Barravento

É no xaréu que brilha a prata luz do céu/E o povo negro entendeu que o grande vencedor/Se ergue além da dor/Tudo chegou sobrevivente num navio/Quem descobriu o Brasil?/Foi o negro que viu a crueldade bem de frente. /E ainda produziu milagres De fé no extremo ocidente”.


Milagres do Povo, Caetano Veloso


O termo Barravento é cheio de significados. Significa o momento em que o vento muda (existe “barlavento” e “sotavento”) e ao mesmo tempo é um certo toque no tambor de candomblé. Para os pescadores, é o momento da tempestade. É nesse último sentido que Glauber Rocha o utiliza: o momento da revolução, da mudança. Glauber mesmo explicou o filme em carta publicada posteriormente a Paulo Emilio Salles Gomes:

A estrutura do filme é simples: Firmino acha que o povo é besta e inconsequente, bota feitiço e fura a rede. O “DONO” da rede manda buscar a rede, mas se não houver peixe logo. O mestre induz todos ao conserto da rede, mas Firmino corta a rede na outra noite. A polícia vem e leva a rede. A fome acossa e todos devem pescar em mar alto. Batendo “Barravento”, morrerão muitos. O Mestre é um conservador, fanático e covarde. Primeiro tempestade e Aruan enfrenta mar violento na jangada, vence o mar e se iguala a Ulisses, todos pescam, vem peixe. Firmino precisa de destruir aquilo, pois não pode admitir aquele sacrifício. Ele também é um fanático, mas tem um horizonte de liberdade. Sua amante, a negra Cota, atrai Aruan e o seduz. Aí é que eu luto entre a realidade e o misticismo. Aruan perde os poderes e as desgraças se sucedem violentamente (ROCHA, 1997, P. 127).


A história do filme fez jus a esse nome e foi repleta de tumultos e revoluções do começo ao fim. O filme era parte de um movimento pujante do cinema baiano, mas era, nos bastidores da área de cinema, chama-se um “filme-boceta”: um filme em que o diretor, apaixonado por um linda atriz, chama-a para ser protagonista de um filme como forma de conquistá-la. E isso aconteceu. Rodado em 1959 e exibido em 1962, foi o primeiro longa dirigido por Glauber Rocha. O roteiro misturava o misticismo de Paulino com o impulso revolucionário de Glauber.

No entanto, as filmagens, locadas na paradisíaca praia de Buraquinho, então um lugar selvagem próximo a Salvador. Paulino só filmava imagens de sua musa Sônia Pereira e o filme andava lentamente, colocando tudo em risco. Glauber Rocha, amigo de Luiz Paulino e que, soube do que estava ocorrendo e, tomado de fúria, foi ao local das filmagens e expulsou Paulino da direção, retomando o filme. A equipe de filmagens contava com auxílio do diretor Nelson Pereira dos Santos. Ruy Guerra, diretor luso-brasileiro que então filmava o documentário O Cavalo de Oxumaré, também esteve em contato com a equipe de Barravento. Imagens de um ritual de umbanda envolvendo uma bela atriz branca (Irma Alvarez) foram reproduzidas pela imprensa (revista O Cruzeiro, algo como a revista Veja é hoje para nós) como sendo do filme de Rui Guerra, mas eram de Barravento. Glauber denunciou ruidosamente, na imprensa, o plágio. E acusou Nelson de apresentar de forma exótica e racista o candomblé. Irrompeu, então, na imprensa nacional esse grande polemista que foi Glauber. Em carta para a revista, ele alegou estudar a sério o problema da cultura baiana, combatendo com Barravento o pitoresco e o exotismo, afirmou que “filmou candomblés autênticos”, enquanto o filme de Rui Guerra era “um carnaval, uma mistificação” destinado à Europa. Afirmou – e também em cartas –que seu filme falava de negros como parte do drama da humanidade e não “negros enquanto negros”, reflexo racista que via tanto em Jorge de Lima quanto em Jorge Amado.

Glauber, embora crítico da religiosidade enquanto narcisismo e temor, não deixava também de frequentar videntes e pais de santo. Embora fosse um grande crítico dos comunistas, era ao mesmo tempo um boêmio e que, embora crítico, também usava maconha e cocaína como os hippies.

Luiz Paulino, depois de realizar mais dois filmes, está com setenta e dois anos e vive aposentado em Airuoca, Minas Gerais, mas evita comentar o episódio, para ele muito desagradável, pois Glauber e ele deixaram de ser amigos depois disso.

Igualmente, Barravento foi chamado de “poema documental” pelo crítico de cinema do Jornal A Tarde: o hoje famoso músico Caetano Veloso. O emprego de crítico foi seu primeiro emprego enquanto artista e foi conseguido graças aos textos que Caetano enviava a Glauber Rocha. Glauber sempre se empenhou em estimular jovens talentos.

Outra polêmica foi que Glauber quis colocar sua bela namorada e atriz, a colunista social Helena Ignez, no papel de protagonista, mas recuou quando viu que o acusariam de fazer “filme-boceta”.

Glauver Rocha

Glauber Rocha, até então um diretor esteta, célebre pelo curta Pátio, que refletia a então nascente poesia concreta paulista em imagens, deu uma guinada em sua filmografia com esse Barravento. Inspirado em Eisenstein e Jorge Amado, deu uma forte conotação social ao filme. Seu principal enfoque nos faz lembrar o que o marxismo diz: a principal luta de ideias de nosso tempo é entre ciência e religião, ou seja, entre materialismo e idealismo. No filme, o personagem Firmino representa a crítica materialista e os demais moradores da vila de pescadores entram em conflito com ele devido à visão moderna, urbana e materialista que ele traz. Firmino é contra o patrão e contra o misticismo, sempre associando exploração/religião.

Em carta dessa época, Glauber mesmo assumia não ter lido Marx e sim ser um cristão simpatizante da revolução socialista. É esse o motivo-guia dos conflitos do filme: o candomblé, ao dominar a mente dos pescadores do litoral com superstições e crendices, tornava-se um obstáculo à conscientização social. Posteriormente, Glauber Rocha revisou essa posição em seu texto Estética do Sonho, assim como em filmes como Idade da Terra, lançando a ideia de que os mitos africanos e indígenas são o que temos de original culturalmente e que devem ser a base de nossas criações. Para ele, a Igreja Católica era mera “feitiçaria da repressão” e a nossa classe média, mera caricatura da classe média dos países desenvolvidos, ou seja, um fracasso. 


Bibliografia: 

ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo. Org. Bentes, Ivana. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 

GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha: Esse Vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.




Sobre o Autor:


Lúcio Junior Espírito Santo. Graduado em Filosofia. Mestre em Estudos Literários/UFMG. Blog: revistacidadesol.blogspot.com). Bom Despacho, Minas Gerais. Nascido em Uberaba, 1974.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...