Representações das duas Grandes Guerras Mundiais nas caricaturas de J. Carlos

“O ente que olhar, daqui a cem anos, as obras-primas
de J. Carlos, poderá viver a vida que andamos vivendo.”
Álvaro Moreyra (companheiro de J. Carlos)

Introdução


Pesavento em seu livro História & História Cultura (2003), expõe que é necessário ter uma idéia na cabeça, uma pergunta na boca, os recursos dos métodos nas mãos e um universo de fontes diante de si a explorar. Iniciamos a primeira parte de nossa exploração e escolhemos trabalhar com as representações brasileiras frente às duas grandes Guerras Mundiais (1914 a 1918 e 1939 a 1945) através das caricaturas de J. Carlos. Entendemos que as imagens provocam um conjunto de estímulos, ou seja, seus traços estão cobertos de significados, onde demonstra o imaginário da sociedade de sua época, e constituem representações do mundo elaboradas para serem vistas.

O Brasil é conhecido pela vasta tradição de caricatura e publicações humorísticas presentes nas manifestações políticas. Através de caricaturas e charges, cria sua própria identidade, proporcionando à metrópole um lugar de destaque em toda imprensa, por toda metade do século XX. É neste período que encontramos José Carlos de Brito e Cunha, o cronista do lápis, estigmatizado por J. Carlos, como assinava seus traços.

Lançando seus desenhos em 1902, na Revista o Tagarela, repentinamente seu traço tornou-se belo, captando toda a sociedade em que vivia. J. Carlos era sóbrio, sisudo, e assim também eram seus riscos, trabalhando em diversas e grandes revistas da época, como O malho, Tico-Tico, Fon-Fon, Cartea, A Cigarra, Vida Moderna, Eu Sei Tudo, Revista da Semana e O Cruzeiro. Depositaram a ele a incumbência de Diretor Artístico da Empresa O Malho S/A, até 1950, ano de sua morte.

Dada expressividade em todo contexto histórico brasileiro, a importância conferida a caricatura exercida nos meios de comunicação da época, sendo uma das marcantes formas de manifestar a compreensão quanto aos acontecimentos políticos, procuraremos focar apenas a este autor, e apenas duas caricaturas, e a dois fatos históricos, pois nessas imagens emana o sentimento político do autor, quanto à posição assumida pelo Brasil diante das Guerras.

A caricatura revela muito mais do que aquilo que foi desenhado. Não se trata da realidade em todos os seus aspectos, mas uma idéia, um entendimento, uma visão, uma realidade que é transmitida através de ironia e deboche, ora de maneira implícita ora de maneira explicita, evidencia os significados de uma época e revelam valores e sentimentos que permeiam a sociedade, onde a imagem, autor e espectador estão inseridos. Substituem as palavras, ou seja, a imagem provoca, instiga, desperta.

Um ponto que carece de explicação é a diferenciação adotada por alguns entre de charge e caricatura, a primeira é considerada estilo de ilustração, desenho ou pintura que tem por finalidade satirizar um acontecimento, geralmente de caráter político e existe uma coletividade, é de conhecimento de todos e a caricatura possui estilos privativos, próprios de uma pessoa. Herman Lima, em seu Livro “História da Caricatura no Brasil”, usa os termos caricatura e charge para se referir basicamente às mesmas coisas, acredita ser a arte de caracterizar, portanto adotamos esta postura mais abrangente.

Compete então a nós percebemos os traços, vestígios, para podermos ir além daquilo que se queria falar neste caso caricaturar. Revelando como um indivíduo percebe a “realidade” a qual está inserido, e como este mesmo indivíduo a interpreta, demonstrando através de suas sensibilidades a visão da guerra e como esta visão é partilhada pelo público.


“... detalhes, os acessórios, a paisagem e o entorno, os
elementos secundários, enfim, que, tal como no método
indiciário levarão a imagem falar e revelar significados.”
(PESAVENTO, 2003, p. 88)


Das Caricaturas


“Desenho o que quero desenhar, ou por outra,
o que posso desenhar. Uma prova disso é que as
legendas de meus desenhos são também minhas.
Criticando e ironizando os inimigos da liberdade
creio que estou andando bem”

(J. Carlos)


Nossa tentativa é verificar nos desenhos de J. Carlos uma difusão de significados políticos, se os grupos de indivíduos partilhavam da visão que o autor realizava dos problemas que se desenrolavam naquele momento. Através também das caricaturas das duas grandes guerras, podemos notar um J. Carlos à frente do seu tempo, sagaz, único, protestando através do olhar do seu lápis.


“As imagens estabelecem uma mediação
entre o mundo do espectador e o do produtor, tendo
como referente a realidade, (...) imagens são formas de
representação do mundo que constituem o imaginário”

(PESAVENTO, 2003, p. 86)



Considerando a relação entre o autor e o espectador é estabelecido e o entendimento ocorre através de reflexão ou esclarecimento, deve haver uma familiaridade com o objeto da caricatura e aquilo que se quer vincular para alcançar aquilo o que se deseja comunicar, então se pressupõe que para ocorrer à interpretação num mesmo sentido implica em uma visão da realidade, compreensão partilhada, isto é, as experiências apreendidas levam os indivíduos à mesma interpretação, a representarem à realidade de uma mesma maneira.

Nas caricaturas a seguir apontaremos os elementos que constituíram os indícios de nossa interpretação, procuraremos apontar as evidências que surgem tanto em um primeiro plano quanto aos que se encontram no segundo. Até que tenhamos analisadas as diversas formas de ver a mesma caricatura, ou seja, várias formas de interpretações, nos guiam através de descrições detalhadas onde identificamos as variáveis percebidas com as variáveis que obtemos através da reflexão, realizando neste caso um trabalho necessário a fim de compreender aquilo que está nas "entrelinhas" da imagem, pois a caricatura possuiu a capacidade de sintetizar um conjunto de idéias.

Sabemos que as imagens devem conjetura um impacto, estimula as sensibilidades aos que vêem e J. Carlos expunha a sua a cada traço. No primeiro plano ela dever vir aparente, natural, no segundo encontramos sinais e significados, escondidos nas representações.

Primeira figura referente à 1ª Guerra Mundial, compreendida no período de 1914 – 1918. O circo estaria armado, na platéia há atores importantíssimos, ansiosos, aflitos, irrequietos, disfarçando atrás de bigodes, à espreita de qual lado será o futuro tombo da artista Esta por sua vez, assustada e preocupada porque as ligas não lhes deixam folgas para que possa equilibra-se.

A artista – si essas ligas continuam a me apertar as pernas, eu vou ao chão!
J. Carlos. Careta,ano 9, n.º 407, 08/04/1916 (BN)

Deflagrada a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1948),
o presidente Venceslau Brás (1914 – 1918) mantém o país
neutro durante os três primeiros anos do conflito. A opinião
pública é, porém, favorável aos Aliados, o que se traduz na
ação da Liga de Defesa Nacional (1912) e da Liga Nacionalista,
criada em 1917. Apenas em outubro desse ano o governo
declara guerra à Alemanha, depois que seus submarinos
afundam navios mercantes brasileiros. O Brasil é o único
país da América do Sul a participar militarmente da guerra.”
(LEMOS, 2001.)

O palco dessa imagem é o circo. Onde todos esperam por uma decisão. Assim o circo é a guerra, talvez um circo de horrores, de atrações bizarras. Na imagem figura de Venceslau Brás “mantendo a pose” disputa nossa atenção com a figura da artista.

O presidente se mantém ali, aguardando a queda da artista, parece não manifestar nenhuma solidariedade, não está disposto também a realizar o esforço, pois uma vez que se coloque a ajudar a artista ele está ciente de que terá de agüentar o peso, a artista por sua vez possui um tamanho avantajado, o que nos remete ao tamanho do território brasileiro, e a falta de equilíbrio evidência uma imensa nação desajeitada quando o assunto a decidir-se que lado ficar. Cabe observar que a vestimenta da artista é uma camisa com a frase “neutralidade brasileira”, ou seja, apesar de estar explicito tal informação essa não é relevante, pois não é respeitada, não importa se a nação deseja a neutralidade os agentes da guerra assim não o querem.

Estes estão integrando a platéia, aguardando assim como o presidente a definição “da artista”, como se estivesse em suas “mãos” a decisão de cair de um dos lados. Porém como artista este é o seu papel. Subir ao palco e realizar o show. Porém o que mais lhe incomoda não é a corda – bamba, mas sim “as ligas” que lhe apertam a perna. Pois a “artista” está acostumada a andar na corda, mas agora há um novo elemento e com este a artista ainda não aprendeu a andar.

Em cada “liga” há uma inscrição diferente na perna direita há “Liga dos Aliados” e na esquerda “Liga dos Alemães”, podemos observar que a perna que está apoiada é à direita, ou seja, onde está à base de seu equilíbrio, evidenciando a posição política de J. Carlos, sendo apontada também por Isabel Lustosa,


“J. Carlos manifestou-se sempre a favor dos Aliados,
mas tanto na Primeira como na Segunda, denunciou
com veemência a estupidez da guerra.”

(Lopes, Pesavento, Velloso, 2006, p. 159)


Partiremos agora à análise da caricatura relacionada à Segunda Guerra Mundial – 1939 a 1945, onde a Força Expedicionária Brasileira (FEB) enviou 25.300 homens que lutaram ao lado dos Aliados na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, com total inaptidão.

NAS MONTANHAS ITALIANAS
O expedicionário – que “negóço” é este?.... Tu és “Vasco”?
J. Carlos. Careta, ano 37, n.º 1904, 23/12/44 (BN)

“Para participar da guerra, o Brasil formou a Força

Expedicionária Brasileira (FEB). Apesar de mal treinados,

os brasileiros têm participação importante em algumas
batalhas em território italiano, com destaque para a
tomada do Monte Castelo (21/12/45), onde, ao preço
de numerosas baixas, derrotam uma divisão alemã.”
(LEMOS, 2001.)


Isso é retratado com perfeição na Figura 2, onde de forma nítida a falta de preparo do militar brasileiro frente ao inimigo, e representado, ou seja, homens que não tinham a guerra como realidade, foi exposta a isso e não sabia como agir.

Outro sinal hilário seria descrito na charge, onde o expedicionário espantado pergunta se o inimigo era “Vasco”, pois a Cruz Pátea segundo seu imaginário era símbolo do Club de Regatas Vasco da Gama, que naquele ano (1945) havia vencido do Campeonato Carioca com uma equipe conhecida como “Expresso da Vitória”, ou seja, a Cruz que ora integra um dos símbolos do nazismo era completamente alheia ao soldado.

Agora será que o “inimigo” questionado sobre tal símbolo sabia que estava usando um símbolo do “Vasco”? Mas isso realmente não importa, o que procuramos mostrar aqui é que os “símbolos” que identificavam o inimigo era interpretado de outra maneira pelo “soldado”, pois a guerra era algo distante ao seu cotidiano.

Portanto na primeira caricatura “Equilíbrio difícil” ao retratar a demora do Brasil ao se posicionar quanto à guerra demonstra a dificuldade de optar frente a uma nova situação. Não que o Brasil nunca tivesse participado da guerra, mas neste caso as proporções eram enormes e as conseqüências de uma opção equivocada eram consideráveis, ou seja, a guerra era algo novo a se pensar.

Quando ocorre a 2ª Guerra Mundial o Brasil já possui um posicionamento, claro que tomado em virtude de relações econômicas que superaram os aspectos políticos ideológicos, mas quando sua participação se faz necessária à segunda caricatura “Nas montanhas italianas” à falta de preparo do soldado brasileiro, mostra que apesar do país ter tomado uma posição a favor dos Aliados, o militar não conhecia seu inimigo, pois a batalha era algo novo.

Dada a sua expressividade e importância exercida nos meios de comunicação da época, sendo as caricaturas uma das mais importantes manifestações políticas, ou seja, operava com o fazer crer, constituindo assim o imaginário da sociedade. Pois em ambas caricaturas o que se procura evidenciar é que a guerra era algo externo a sociedade brasileira e as atitudes dos agentes políticos.


Considerando a importância do autor já mencionada na primeira parte deste ensaio, endossado por Isabel Lustosa,

“O caricaturista de que vou falar aqui foi o homem que retratou

de forma mais constante e plena o espírito do povo brasileiro.

Ele ocupou as páginas das principais revistas de humor
brasileiras ao longo de toda a primeira metade do século XX.
E pode-se dizer que J. Carlos, pela dimensão de sua obra,
é ainda hoje o maior nome da história de nossa caricatura.
Naquele começo de século, eram muitas as revistas brasileiras
que se sustentavam basicamente na caricatura (...)
e J. Carlos, ao longo de sua carreira, teve atuação
destacada nas três mais importantes”.
(Lopes, Pesavento, Velloso, 2006, p. 153).



O autor está inserido na sociedade, portanto sofre influência das informações constantes nos meios de comunicação e expressa sua percepção a cada traço, e J. Carlos foi competente ao compartilhar significados por quase meio século, em síntese, o caricaturista do lápis, sabia representar, imaginar, trazer a realidade nos seus desenhos, provocando sensibilidades para abarcar e envolver a nossa própria visão de mundo.


Conclusão

Procuramos neste breve ensaio estabelecer a ligação entre as caricaturas elaboradas por J. Carlos sobre a temática da guerra e as representações brasileiras frente a algo alheio. Observamos que as imagens procuram dar uma idéia da realidade que é transmitida através de ironia e deboche, principalmente sobre aquilo que é alvo da caricatura, o político.

O imaginário do autor é representado através das caricaturas aqui trabalhadas, e que a imagem revela como os homens representam a si próprios e o mundo e esta possui sentimentos, valores e conceitos. Em virtude da ênfase dada na figura 1 e 2, em relação à percepção política brasileira diante da guerra. Observando a importância do autor das imagens como mencionado neste ensaio, entendemos que esse era um agente influente na sociedade de sua época, e sua visão de mundo era partilhada por aqueles que admiravam a sua obra ou simplesmente passavam a realizar novas leituras da realidade, repensando as posturas assumidas.

Concordamos com Belmonte, J. Carlos nos ensinou a fazer uma leitura da sociedade em que vivemos, caricaturou trazendo à tona uma visão de mundo. Pressupondo que somos movidos pelo consciente, seus traços, cercavam nossa mente de verdades, por isso fazia rir, transformando os indivíduos.



Bibliografia


GINZBURG, Carlos. O queijo e os vermes, Cia das Letras, 2006.

 GINZBURG, Carlos. Mitos, Emblemas e Sinais, Cia das Letras, 1989.

LEMOS Renato (org). Uma história do Brasil através da caricatura. Rio de Janeiro: Bom Texto, Letras e Expressões, 2001.

LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil, V.4 , José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1963.
PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural – Editora Autêntica – 2003. LOPES, Antônio Herculano, PESAVENTO, Sandra Jatahy, VELOSSO, Mônica Pimenta, História e Linguagens Textos, imagem, oralidade e representações - Editora 7 Letras – 2006.

Sobre o Autor:

Maria José Silva Caldas Fagundes Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Bandeirante de São Paulo - Curso Extensão Elaboração de Projeto de Pesquisa e Educação a Distância na Prática: planejamento, legislação e implementação PUC - SP Atualmente desenvolve Projeto de Pesquisa de Mestrado Teresa Cristina Imperatriz do Brasil História Social - Linha de Pesquisa História das Mulheres - Autora e Tutora em Educação à Distância Formação Continuada para Professores. Cursos lançados:  Novos Olhares na História, O Olhar do Outro - O Negro no Brasil Pós-Abolição, História e Cultura Afro-Brasileira.

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