O legado de Sérgio Arouca para a saúde brasileira

Saúde é Democracia, afirmava Sérgio Arouca, em seu pronunciamento, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, no ano de 1986, um momento histórico para a consolidação do sistema nacional de saúde que conhecemos hoje. A Democracia, uma proposição central na concepção do Sistema Único de Saúde (SUS), nasce no contexto ideológico da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), como projeto de mudança para uma nova configuração desse sistema, em um processo de redemocratização de um país pós-ditadura empresarial militar, o que favoreceu a abertura à inclusão ampla dos atores envolvidos.

Roberto Freire e Sérgio Arouca

Democracia sempre foi uma pauta de luta e talvez a maior contribuição de Antônio Sérgio da Silva Arouca. Mas afinal, quem foi Sérgio Arouca?

Médico Sanitarista, é talvez o maior nome da expressão do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, sendo ao lado de Cecilia Donnangelo, marco teórico e analítico da transição da “Medicina Preventiva Brasileira”, para a mais brasileira ainda “Saúde Coletiva”. Arouca, fez ao longo de sua vida, não somente contribuições para o desenvolvimento de sistemas estatais de saúde, mas forjou em seus postulados a ideia da democracia como pilar fundamental de construção de projetos coletivos, classistas e transformadores. Combatente ferrenho de qualquer tipo de opressão e autoritarismo, o comunista Sérgio Arouca, sempre imprimiu em suas ideias, seja no campo da saúde, seja no campo politico, a perspectiva de um “sistema de produção onde a exploração do homem pelo homem fosse substituída por um sistema de colaboração e de inclusão dos cidadãos ao projeto de Estado Nação”. A partir disso, teceu um projeto transformador da saúde brasileira onde a opção pela democracia passasse pela ampliação das bases nos processos decisórios.

Em 1967, tornou-se professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp “onde foi um dos fundadores do Grupo de Ciências Sociais da Saúde. Este Grupo tornou-se referência nacional focalizando a Medicina Preventiva numa abordagem marxista, onde o tema do coletivo e da inclusão social emergiu como palavra de ordem no contexto social e político adverso da ditadura militar”. Neste período ganha força um movimento de professores, ainda focalizado em São Paulo e Rio de Janeiro, que na liderança de Arouca, buscavam novos horizontes para a saúde brasileira, não abrindo mão dos importantes postulados do sanitarismo de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Uma saúde social, pautada na realidade concreta da sociedade brasileira, ganhava corpo e mente, nos embalos das lutas em favor de um país democrático e moderno.

Na década de 1970, tem uma importante atuação como consultor da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), onde aprofunda seus estudos e produções acerca do impacto da organização dos modelos socioeconômicos, como determinantes sociais de produção de saúde. O endurecimento da ditadura, foi respondido com aprofundamento nos estudos sobre a consolidação de uma nova sociedade, voltada à democratização dos espaços decisórios. Em 1975, Arouca publica sua Tese de Doutorado, intitulada “O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva”, onde buscou compreender “como foram produzidas as regras da formação discursiva da Medicina Preventiva e as relações com instâncias não-discursivas, estudando as articulações com o modo de produção capitalista. A análise dessas articulações possibilitou a Arouca evidenciar que a Medicina Preventiva não fugiu à contradição fundamental da Medicina que transforma a saúde, um valor de uso, em valor de troca, através do cuidado médico”. As ideias de sua Tese, serão de grande impacto na produção do pensamento da saúde brasileira, sobretudo, na organicidade dos debates sobre a organização dos sistemas de saúde.

Em 1980, chegou a atuar na Nicarágua, como consultor da OPAS na construção do programa da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), no planejamento de um sistema de saúde revolucionário. Mais tarde, de volta ao Brasil, seu trabalho teve grande importância na Escola Nacional de Saúde Pública e à frente da presidência da Fiocruz, uma das mais importantes instituições de ensino, pesquisa e assistência em saúde do país, tendo papel fundamental em sua reestruturação. Fez reformas administrativas importantes, sempre na perspectiva da ampliação da participação nas decisões.

Sérgio Arouca discursa para funcionários na Fiocruz

Arouca imprimiu o tema da democracia até mesmo na consolidação do projeto da RSB. Não foi por tacão, acordo ou por postulados teóricos, simplesmente, que Arouca fez expressar seus pensamentos nos textos legais que viriam sobre o SUS. O fez em disputa, no debate, nos plenários das Conferências Nacionais de Saúde, assim como nos espaços de militância em que participava. Assim como muitos militantes da RSB, Arouca, tratou de transformar a ambição de um sistema universal de saúde, em um projeto nacional e popular.

Em 1986, presidiu a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ou familiarmente apelidada de “oitava”, que foi o “divisor de águas” para a construção do SUS no Brasil. A RSB ousou a transformação de um sistema de saúde, baseado na participação popular, como paradigma central para a consolidação de um sistema universal de saúde, tudo isso, com muita influência das ideias de Sérgio Arouca. Nesse momento, Arouca já era o maior nome da saúde publica brasileira.

Sérgio Arouca após o fim da ditadura de primeiro de abril

Nas eleições de 1989, foi vice na chapa do Partidão, encabeçada por Roberto Freire. No ano seguinte foi eleito deputado estadual pelo RJ com votação expressiva. O nome de Arouca cada vez mais de consolidava como figura de expressão política no Brasil. Em 1996 concorreu à prefeitura do Rio pelo PPS. Infelizmente, Arouca, assim como boa parte da esquerda brasileira, sentiu a “brisa da queda do muro de Berlim” e suas críticas às organizações da esquerda brasileira da época fizeram com que encabeçasse, junto com outros, o “movimento liquidacionista” do PCB, que culminou em um dos mais importantes rachas da história da política brasileira, separando o grupo marxista-leninista, que hoje toca o PCB, do grupo da “nova esquerda”, culminando na criação do PPS. Fico pensando hoje, o que Arouca diria ao ver os rumos que o partido que ajudou a construir tomou. Roberto Freire do PPS, foi ministro do “governo” Temer, um dos mais avassaladores e destrutivos à saúde brasileira, após a criação do SUS.

Em agosto de 2003, falece no Rio de Janeiro, Sérgio Arouca. Em tempos de PEC 55, planos populares de saúde, e análises de presidentes de que “a saúde não precisa de ampliação de recursos”, retomar o legado de Arouca, não só nos faz repensar práticas, perspectivar lutas em defesa do SUS, mas como também, inspirar tempos de transformação pela democracia.


Professor Sérgio Arouca falando na abertura da 8° Conferência Nacional de
Saúde, realizada em março de 1986


Textos consultados:

ABREU, R. O Legado de Sérgio Arouca. Disponível em:
<http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/olegado.htm>.

ALMEIDA, C. Por que recordar Sergio Arouca? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janiero, v. 19, n. 8, p. 1485-1487, 2013.

AROUCA, A. S. da S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Tese de Doutorado (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas.1975.

COSTA, R. P da. Do dilema preventivista ao dilema promocionista: retomando a contribuição de Sérgio Arouca. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2015.

Sobre o Autor:

Rafael Cerva Melo: Secretário político do PCB Alvorada/RS e sanitarista.

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