DOCUMENTO HISTÓRICO: A CAMPANHA SALARIAL DOS METALÚRGICOS DE SÃO PAULO, OSASCO E GUARULHOS (1979)

(Comissão Estadual de Reorganização PCB-SP, novembro de 1979)

A atenção dos comunistas há meses se ocupa da campanha salarial dos metalúrgicos da capital, Osasco e Guarulhos, tendo vindo a público no mês de setembro documento de análise e orientação, no qual alertávamos os trabalhadores e o conjunto das forças democráticas para a importância de assegurar-se um curso e um desfecho vitoriosos a esse movimento, ao mesmo tempo que apontávamos os erros capazes de levarem a classe operária a uma derrota sob todos os pontos de vista indesejável.

Terminada a campanha da forma que todos conhecem, com magros resultados econômicos, uma greve minoritária e sem esperança, desarticulada sob repressão violenta – que não hesitou em assassinar uma liderança combativa e responsável – e com o agravamento das divisões na categoria, sentimo-nos no dever de iniciar o debate das causas da derrota e das responsabilidades pela conclusão incontestavelmente desastrosa desse momento da luta dos trabalhadores. Esse debate, longe de se limitar a uma inútil flagelação, deve clarear o pensamento das correntes e lideranças mais consequentes e lúcidas do operariado metalúrgico da região, para que desenvolvam desde já uma ação militante e firme na reorganização e reunificação da categoria, na resistência à ofensiva patronal que pode seguir-se a essa derrota, materializando-se em demissões e redução dos já minguados direitos de organização no interior das fábricas.

Os sete pecados capitais da campanha

Sem a preocupação de estabelecer uma hierarquia de erros, consideramos os seguintes como fundamentais para o fracasso da campanha:

Falta de esclarecimento sobre as implicações da nova política salarial do governo

É de justiça assinalar que se tratou de equívoco do conjunto do movimento sindical, que não avaliou corretamente o significado e a repercussão da conversão em lei da proposta dos reajustes semestrais. Os trabalhadores poderiam mobilizar-se para a luta contra os numerosos aspectos negativos do projeto governamental, se os sindicatos  os chamassem a conquistas reajustes trimestrais (como previa o substitutivo do MDB) ou a escala móvel de salários, ao lado da defesa da livre negociação e do combate aos retrocessos inseridos na proposta do governo. A mera agitação genérica contra o projeto, acompanhada de lamentações sobre a possível perda de substância dos sindicatos, só poderia conduzir, como conduziu, a mobilizações fracas e à perplexidade entre os operários, com reflexos negativos na disposição dos metalúrgicos de se integrarem à luta salarial.

Comportamento faccioso e divisionista da oposição sindical

Numa campanha importante e difícil como a que analisamos, a unidade da categoria era absolutamente indispensável para que fossem obtidas vitórias. Mas os grupos aventureiros e sectários reunidos na autoproclamada Oposição Sindical tinham exatamente o objetivo de impedir essa unidade com a ideia fixa de utilizar a campanha – desde o início – para impor sua influência aos trabalhadores. Para isso, sacrificou todos os objetivos (inclusive aquele que deveria ser comum a todas as correntes: a conquista de um bom aumento salarial para os trabalhadores em luta). Tudo foi sacrificado para alcançar sua meta facciosa de desgastar as diretoria dos sindicatos, particularmente os da capital e de Guarulhos, tendo conseguido neutralizá-las. Pretendendo, acima de tudo, qualificar-se como alternativa de direção dos metalúrgicos, levou-os a um desastre e demonstrou o quanto é perigosa e nociva sua conduta no movimento.

Fixação de reivindicação irrealista

A aprovação de um conjunto de reivindicações, no qual se destacava a de 83% de aumento sobre os salários atuais, foi um severo golpe nas possibilidades de êxito da campanha. Para muitas empresas, isso significa uma reivindicação de mais de 120% de aumento sobre a data-base, uma vez que antecipações já vinham sendo conquistadas. É bastante verificar os resultados das lutas salariais dos metalúrgicos no último ano para se compreender o absurdo desse pleito. os melhores resultados foram, obtidos no Rio de Janeiro (75% sobre a data-base). O ABC, em maio, após um mês de greve, conseguiu 63%. O irrealismo da reivindicação desanimou os trabalhadores e limitou sua mobilização.

Colocação da greve como objetivo da campanha, em lugar do atendimento das reivindicações

Desde o início da campanha, os grupos sectários e aventureiros trabalharam no sentido de conduzi-la a um impasse, diante do qual só restaria à categoria o recurso à greve por tempo indeterminado, fossem quais fossem as condições. Com esse objetivo, impuseram um índice irrealista e trataram de manietar as comissões de negociações, impedidas de, efetivamente, negociar, examinar e apresentar contrapropostas. Completou a tática mencionada, a recusa do exame sequer da hipótese de greves parciais, de advertência, capazes de contribuir para evitar o bloqueio das negociações. Com a única exceção de Osasco, não foram apresentadas contrapropostas aos patrões, que se beneficiaram da divisão e desmobilização das bases operárias e endureceram suas posições.

Violação da democracia operária

Como classe social vitalmente interessada na democracia, o proletariado tem necessidade de praticá-la em primeiro lugar em suas organizações, assembleias e movimentos. Essa necessidade não decorre apenas da preocupação de oferecer exemplos de vida democrática ao conjunto da sociedade, mas é indispensável da unidade dos trabalhadores. Na presente campanha, a democracia operária foi muitas vezes violada. Em assembleias, o tempo dos oradores foi, às vezes, limitado a um minuto, o que impediu a exposição serena das ideias e a reflexão. Charangas e batuques, levados pela Oposição Sindical, procuravam abafar a palavra dos companheiros que dela divergiam. Tentativas de cassação da palavra de oradores, da tomada de microfones pela força, de agressão física a companheiros, no recinto mesmo de assembleias, foram registradas. Procurou-se impedir a livre circulação de panfletos e manifestos, chegando-se mesmo a agredir e espancar companheiros, para confiscar-lhes panfletos. Por mais repugnantes e graves que sejam essas tentativas de impedimento do debate, elas não esgotam o nosso tema, pois ainda mais grave foi a decisão de impor ao conjunto da categoria medidas sérias, como a decretação da greve em assembleias que reuniam apenas sua parcela mobilizada, infelizmente minoritária.

Os procedimentos antidemocráticos e golpistas referidos provocaram o afastamento de muitos operários da campanha, descontentes com o clima de disputas e divisão que presenciaram em reuniões e assembleias.

Reedição de práticas golpistas: greve de fora para dentro das fábricas

Uma das mais importantes características das mobilizações da classe operária brasileira, iniciadas com a greve dos metalúrgicos de São Bernardo, de maio de 1978, foi a superação de certa tradição cupulista e outras que se sucederam foram  deflagradas e conduzidas de acordo com a vontade da imensa maioria dos trabalhadores, mesmo sem a realização prévia de assembleias, nascendo nas fábricas e resultando de amadurecida decisão dos operários.

No caso da atual campanha, verificou-se o inverso. Assembleias pequenas e pouco representativas, fruto do efeito acumulado dos erros mencionados, resolveram pela greve sem auscultar o ânimo dos trabalhadores, sem pesar o grau de organização, sem medir as consequências de uma derrota, sem avaliar as possibilidades reais de vitória. Dessa forma, a única maneira de tentar obter a adesão da maioria foi a formação de piquetes que procuravam animar os trabalhadores e levá-los a interromper a produção. Raras fábricas pararam por decisão autônoma de seus operários, e a maioria retomava o trabalho no dia seguinte, a não ser que um piquete voltasse a paralisá-la. Essa distorção da função dos piquetes (que deveriam atuar para convencer uma eventual minoria de trabalhadores a acatar a decisão de greve da maioria) foi uma debilidade fundamental, logo percebida pelos patrões e pela polícia – que desencadeou criminosa ação repressiva, certa de que sem piquetes não haveria adesão importante ao movimento. Nossa frontal repulsa à repressão, nossa decidida disposição de lutar pelo direito de greve, pelas amplas liberdades democráticas, não podem nos impedir de condenar severamente a tentativa golpista de fazer greves que dependem unicamente de piquetes, concebidos como substitutivos da vontade coletiva e democrática dos trabalhadores de defenderem seus direitos.

Distanciamento do conjunto do movimento democrático

Vimos com satisfação iniciativas adotadas pelos companheiros metalúrgicos, desde o início da campanha, visando ao estreitamento dos laços do movimento operário com os demais segmentos do movimento democrático, nomeadamente a oposição parlamentar, a Igreja e a Ordem dos Advogados. Experiências úteis foram então realizadas. No entanto, a partir da estúpida ação repressiva que culminou no assassinato do companheiro Santo Dias, que suscitou ampla reação do sentimento democrático do nosso povo, buscou-se canalizar essa solidariedade para a tentativa desesperada de reanimação da greve, o que não foi possível, conseguindo-se apenas completar o isolamento daqueles companheiros mais mobilizados, que persistiram no afã de paralisar a produção (com coragem e ardor que se devem ressaltar e compreender, mas, objetivamente, sem possibilidade de alterar o quadro).

Condições indispensáveis para a recuperação da unidade e organização dos metalúrgicos da região

Da análise do malogro dessa campanha devemos extrair as lições capazes de orientar a ação unitária de quantos estejam interessados no avanço da luta de classe operária A principal dessas lições é, sem dúvida, a necessidade das correntes unitárias, combativas e consequentes, entre as quais nos incluímos, de se oporem com maior audácias e firmeza à ação dos divisionistas agrupados na Oposição Sindical, principais responsáveis pela derrota sofrida pelos trabalhadores metalúrgicos. Não fosse alguma falta de clareza, vacilação e tentativa de conciliar com o oportunismo e golpismo da Oposição Sindical, esta teria tido mais dificuldade de se apossar da condução da campanha, como ocorreu especialmente nas etapas finais da mesma. No combate à irresponsabilidade devemos distinguir, cuidadosamente, os mentores da aventura dos numerosos trabalhadores, combativos e honestos, que  foram atraídos pela iniciativa e determinação (inconsequentes, mas nem por isso menos reais) dos aventureiros. Aqueles, devemos convencer pelos argumentos e pela prática, tratando, desde já, de tomar a iniciativa, tanto de realizar o mais amplo balanço dessa experiência, tirando pelas conclusões justas, como a de organizar – de modo unitário, responsável, sério e consequente – resistência às demissões, a solidariedade aos demitidos, a luta para impedir que as precárias conquistas dos últimos anos (entre elas a de reunir e discutir em algumas fábrica, a de ter murais, distribuir impressos e até escolher delegados sindicais) sejam suprimidas pela contraofensiva patronal, que pode ser tentada a explorar a desmobilização e o desalento que se seguem as derrotas.

Com abnegação, firmeza e audácia, o que há de melhor no movimento metalúrgico de São Paulo, Osasco e Guarulhos poderá retomar a iniciativa, e dar início a um processo novo, unitário, que isole os divisionistas e aventureiros e permita aos metalúrgicos a preservação de suas conquistas e o acúmulo de forças para os novos e vitoriosos embates que a classe operária brasileira travará, pela democracia, pela soberania nacional e por melhores condições de vida e trabalho.

 

Fonte: FREDERICO, Celso. A imprensa de esquerda e o movimento operário (1964-1984).  São Paulo: Expressão Popular, 2010  (p. 239-245).

 


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