SANTO DIAS DA SILVA

Santo Dias da Silva foi um operário, negro, metalúrgico, assassinado pela Polícia Militar, no dia 30 de outubro de 1979, às 13 horas de uma terça feira, aos 37 anos de idade. O crime ocorreu em frente à fábrica Sylvana, no bairro Santo Amaro, em São Paulo. Santo deixou a esposa Ana Maria e dois filhos. Braço armado legal do regime empresarial-militar, a policia tentou impedir o acesso ao corpo de Santo, para que ele fosse mais um dos mortos e desaparecidos pela ditadura, mas a coragem de Ana Dias foi decisiva para Santo ter um enterro digno. Um histórico enterro onde estiveram presentes cerca de 50 mil pessoas, e que foi documentado por fotos como as da fotógrafa militante Nair Benedicto. 

 


Cortejo de Santo Dias Foto: Ricardo Alves. Fonte: https://www.jornaltornado.pt/a-morte-de-santo-dias-e-a-dificil-greve-dos-metalurgicos-de-sao-paulo-em-1979/

 

Santo Dias foi um exemplar militante social. Participou do Movimento do Custo de Vida, da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, movimentos de bairro (se destacando ao organizar lutas comunitárias por transportes, escolas e outras melhorias nas vilas), por ai vai. Teve experiências boas e ruins durante a militância, sempre tendo a família como base para o aprendizado e para a luta popular. Diferente de muitos trabalhadores que não se sentem de sua classe, se dizia enquanto um operário, uma pessoa realizada. Ao mesmo tempo que militava e trabalhava, sempre procurava conciliar com o estudo.

 

Santo Dias estudou na escola rural até a metade do 4° ano do primário, por diversos anos trabalhava na fábrica o dia todo e ainda fazia 4 horas de aula a noite. Estudou em curso técnico de Desenho Mecânico por três anos, por um ano Mecânica Geral, durante meio ano Tecnologia de Mecânica. Embora tivesse preferência pela Matemática, participou de cursos rápidos de História, para buscar motivações maiores para a luta política.

 

 

Na foto: protesto durante missa de sétimo dias do falecimento de Santo Dias.

 

Nas vésperas de sua morte, Santo sabia que outros trabalhadores combativos haviam sido assassinados pela ditadura e tinha pressentimento que poderia acontecer algo análogo com ele na greve geral dos metalúrgicos em São Paulo no ano de 1979, ainda assim, nunca esmoreceu.  O filme “Eles não usam black-tie” (1981), apesar de ser baseado em peça teatral da década de 1950, pareceu ter homenageado Santo Dias, ao seu final. Mas quem foi  o Santo, exatamente?

 

Simplesmente um filho da classe trabalhadora, nascido no município de Terra Roxa, no Estado de São Paulo, onde viveu até os 20 anos. Os pais não tinham terra própria, eram meeiros, trabalhavam em um injusto sistema de parceria. Portanto, também não tinham lugar fixo de moradia, assim Santo e sua família passavam por várias fazendas e ele exerceu diversos tipos de atividades.

 

De 1958 até 1962, Santo trabalhou em um grande latifúndio, onde tinha trabalhadores de vários tipos, entre eles trabalhadores operários, como mecânicos, maquinistas, tratoristas. Acabou sendo requisitado para trabalhar na parte operacional como operário, e foi para a oficina, por um ano exerceu as profissões de motorista e mecânico, e após foi para o alambique, onde trabalhou como responsável pela destilação de aguardente.

 

 

Santo e Ana em casa: ambos vindos do interior paulista, casaram-se em 1965 (álbum de família). Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2019/10/santo-dias-40-anos-depois/

 

Por volta de 1960, Santo participou de um movimento político pela primeira vez, uma articulação para reivindicar melhores condições de vida e de trabalho: uma das bandeiras era que os lavradores tivessem o direito de carteira assinada. Um grupo de cerca de 15 pessoas que encabeçou uma paralisação de 2 dias, e Santo tinha apenas 17 anos de idade. O patrão foi despedindo quem liderava o movimento e Santo foi transferido à área do engenho para trabalhar como alambiqueiro. O dono da fazenda começou a empregar os trabalhadores da cidade, e a saída de Santo parecia questão de tempo. No andamento dos diálogos com os operários da fazenda,  Santo ajudou a construir um sindicato rural e aí sim foi solicitado a deixar a área, por questão política e de alterações na produção, com a entrada dos bois na produção. Então Santo e família saem da Fazenda Guanabara, para irem morar em uma casa alugada em Viladouro, depois Santo já casado com Ana Dias vai morar em outra casa alugada na Vila das Belezas, em São Paulo, onde Santo sofre racismo, enfrentando mais essa adversidade.

 

A saída da Fazenda foi difícil, com prazo de dois dias. O pai de Santo teve que vender tudo o que tinham, para conseguirem ir morar na cidade. Chegando em São Paulo, Santo e seus irmãos trabalharam como bóias- frias, por alguns meses.

 

Homenagem no local do assassinato, feita pelo Comitê Santo Dias


Santo Dias vai para São Paulo em 1962 por haver mais facilidade de emprego devido o desenvolvimento automobilístico e por pegarem mão de obra sem qualificação, “de qualquer jeito” como Santo dizia.  Trabalhava fazendo hora extra, sem folgar aos finais de semana, primeiro como ajudante de fábrica e depois como ajudante de fundição. E logo que chegou em São Paulo, participou de greves por décimo terceiro salário, que ainda não existia. Sobre esse assunto, relatou ao Paolo Nosella (1980):

 

“O movimento operário estava em movimento. Não estava parado. Em 62, inclusive foi quando cheguei, já tinha aqui, nas ruas, greves e mobilizações, para reivindicações de salário e nessas reivindicações de salário estava a reivindicação do décimo terceiro, que deu várias paralisações [...] Foi uma greve bastante movimentada e muitos líderes sindicais, os dirigentes sindicais da época, foram todos presos, com exceção de alguns. Operário comum também, foi preso, vários. E, nessa greve, a gente participou, quer dizer, participou da paralisação e participou correndo da polícia, porque, realmente, a polícia baixou o cacete. Eu lembro de alguns detalhes. Por exemplo, na Rua Brasílio Luz, onde eu trabalhava, a polícia fechou a rua e quem estava lá (o jeito era sair) saía levando porrada e não tinha saída. Teve muita gente que conseguiu fugir por uma lagoa. Não era muito funda, mas dava para passar, e os cavalos da polícia não conseguiam. Quer dizer,chegavam na água e paravam. Então, muita gente escapou por aí e muitos foram presos. [...] Essa greve foi uma das primeiras que eu participei, aqui em São Paulo, já como operário, na Capital (p. 35-36)

 

O depoimento de Santo Dias revela que mesmo durante um regime ainda não golpista, a questão social e operária ainda era um caso de polícia.  Além disso, hoje temos o décimo terceiro devido a lutadores populares, entre eles o próprio Santo e diversas pessoas anônimas. Ele tinha, portanto, razão de sobra para ligar o estudo de nossa história com a militância política. O trecho acima está no livro “Porque mataram Santo Dias. Quando os braços se unem à mente”, onde o escritor afirma, em meio a pedaços de respostas de Santo a uma entrevista:

 

“Neste constante contatar companheiros, nesta discussão contínua ao pé da máquina, nesta peregrinação incansável de reunião em reunião e de fábrica em fábrica, se estrutura a autêntica personalidade de Santo Dias da Silva: ’Em 1972, consegui fazer um trabalho em termos de, realmente, contatar companheiros em várias fábricas, em todas as fábricas que a gente pôde fazer’. Mobilização dos companheiros: criação de grupos de fábrica, elaboração do boletim Luta Sindical, participação na greve do 13°, na oposição sindical, na greve de Osasco, na Comissão salarial, contra a legislação trabalhista, etc., etc. Estas atividades de constante mobilização, aos poucos, tornaram-se sua razão de viver e a dimensão fundamental de sua vida. Ele não seria mais alguém, cuja função de intelectual fosse extrínseca à sua vida; nem seria uma pessoa dividida entre um modo de viver e outro de pensar. Participar, mobilizar, explicar, animar, organizar, lutar, seriam seu próprio oxigênio.” (p. 19-20)

 

Vindo da lavoura, onde trabalhava com a família plantando e cultivando, passou desde a infância trabalhando no campo. Ao mesmo tempo se educava no trabalho como camponês e depois como operário, na vida familiar e na igreja. Na juventude era “congregado mariano”, quando dialogava com os comunistas, conforme falas em palestras de sua filha Luciana Dias. Sempre foi, portanto, muito crítico por onde estava, com autonomia, como quando fez esta avaliação da resposta do movimento sindical ao golpe de primeiro de abril de 1964:

 

“[...] Quer dizer, politicamente não se tinha uma discussão, levava-se a convocação para a fábrica ou levava-se para as assembléias; nas assembléias tinha o orador, que era o elemento responsável para fazer a intervenção e mobilizar o pessoal para a greve. Quer dizer, fazia intervenção para inflamar o pessoal para a greve. Aquele pessoal que ia para as assembléias já era o pessoal que devia levar à frente o problema do encaminhamento e da organização da greve, mas ela se dava realmente através dos piquetes. Então se dava pouca possibilidade para um preparo político da coisa. Por causa desse despreparo político, foi que o movimento sindical em 1964 foi pego desprevenido. Deu o golpe, o movimento sindical ficou sem posicionamento. Eu lembro que, na época, a gente e muitos companheiros que trabalhavam comigo (inclusive a gente trabalhava em regime de revezamento, trabalhando à noite e de madrugada) saímos, e vários companheiros que saíram com a gente foram ao sindicato para ver o que fazer. Mas, nesse ir para o sindicato, teve muitos companheiros que foram presos. Chegamos na porta do sindicato e estava a polícia aguardando. Muitos não foram presos porque conseguiram ser avisados antes e voltaram da metade do caminho, porque, realmente, a Rua do Carmo, na época, estava tomada pela polícia. “ (p. 36-37- grifos meus)

 

Segundo Santo, a classe operária foi pega desprevenida e muitos operários sem saber o que fazer diante do golpe, foram ao sindicato buscar orientação e chegavam na porta do sindicato e estava a polícia os aguardando. A partir dessa fala, percebe-se que a ação política sindical enfatizava a greve, que parecia ser a única forma de luta dentro das fábricas.  Depois do golpe, Santo foi protagonista na criação da Oposição Sindical, sem deixar de ser crítico a tudo, seja ao sindicalismo oficial, seja da própria organização que ajudou a construir:

 

“[...] um movimento sindical que está aí simplesmente para cumprir uma tarefa, que é a de manutenção desse regime. [...] Quer dizer, a medida que houve as intervenções, a gente começou a se preocupar em ver um sindicato montado mesmo através da fábrica e, dentro desse processo, a gente conseguiu montar um grupo dentro do movimento operário, que se denominou ‘oposição sindical’. Eu, como vindo da lavoura e como elemento integrante do movimento operário na época (isso ocorreu mais ou menos em 1965) e atuando criticamente nesse movimento sindical, achei que essa proposta de montagem de uma oposição sindical era mais correta. Então, entrei nesse grupo e estou até hoje aí, embora, dentro desse grupo de oposição sindical, exista uma série de divergências, uma série de contradições[...].” (p. 37-38)

 

As divergências e contradições na origem da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo são também apontadas por Carolina Maria Ruy. Segundo a jornalista, pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória Sindical em “A morte de Santo Dias e a difícil greve dos metalúrgicos de São Paulo em1979”:

 

"Consta que naquele mesmo ano de 1965, Santo Dias integrou o grupo de sindicalistas que começou a formar o chamado Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (MOSMSP). Oficialmente o MOSMSP, que agregava a Ala Vermelha, Ação Popular, POLOP, POC, PORT, PCdoB, PCB, Grupo 1º de Maio, membros da Pastoral Operária, Frente Nacional do Trabalho (FNT), militantes independentes, entre outros, deu seus primeiros passos em 1967."

 

A ação de Santo dentro da Oposição Sindical iniciou em 1965, e desde então sempre agiu por meio dela e por meio da Pastoral Operária, dentro das fábricas. Participou da greve de Osasco de 1968. Independente de questões teóricas, depois que organizou a Oposição Sindical, a luta nas fábricas se diversificou. Agora não era apenas por greve, mas também para ocupar direções dos sindicatos onde ele militava.  Teve derrotas eleitorais em campanhas sindicais nos anos de 1969 e 1974, no entanto em 1970 a repressão aumentou ainda mais a perseguição aos operários, chegando a prender dezenas de metalúrgicos (na cadeia os operários foram apelidados de “grupo dos 40”). Em 1975 não havia quantidade de operários suficientes para montar uma chapa sindical da Oposição Sindical.

 

Havia também as campanhas salariais, como a de 1972, onde  Santo participou da Comissão de Salário. Foi liberado da produção e passou a poder contatar operários de várias fábricas. Quando voltou ao trabalho foi demitido, como era esperado, e então foi trabalhar na Burny do Brasil. Em 1973, como militante da Pastoral Operaria (já que a Oposição Sindical praticamente inexistia em seu local de ação), atuou pela Pastoral Operária como apoio ao trabalho da fragilizada OS, dentro da fábrica, obtendo vitórias inclusive barrando a repressão. Organizou nesse ano uma pequena paralisação de seção na hora que o operário estava sendo suspenso, até o retorno dele, com vitória operária. Em 1974, lidera outra pequena, mas melhor organizada paralisação, iniciada na hora do café e estendida durante uma hora, com três reivindicações bastante claras que foram prontamente atendidas. Com esses êxitos, sua liderança aumentava e teve montagem de um esquema de vigilância, resultando na demissão de Santo Dias. A vida profissional estava  marcada por uma série de mudanças de emprego, não só de Santo, como de todo operário mais combativo. Chegando em 1975, por não conseguir disputar lugar em diretoria, a palavra de ordem era trabalhar dentro da fábrica da forma como fosse possível, construir grupos ou comissões de fábrica. A primeira tarefa foi criar o boletim Luta Sindical, que ajudou a consolidar o trabalho da Oposição Sindical.

 


Lápide de Santo Dias

 

Em 1978, com o grupo mais consolidado, monta uma chapa da Oposição, e durante campanha se inicia a greve dos operários da Scania em São Bernardo do Campo, chegando a parede até São Paulo. Aumenta a agitação política, com reuniões desta vez  diárias e de várias fábricas. Por ter um bocado de experiência, Santo é chamado diversas vezes para fazer colocações sobre as greves e como elas se dão, em verdadeiras formações políticas para educar os operários sobre como se fazer a luta sindical. A mobilização era tamanha que muitas vezes as greves e pequenas paralisações começam uma hora após a distribuição pela Oposição Sindical de panfletos anunciando o ato.

 


Eleição do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo em 1978: Santo Dias e Waldemar Rossi na disputa, que teve resultado final contestado (foto de Nair Benedicto) Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2019/10/santo-dias-40-anos-depois/

 

Santo nesse momento trabalhava na fábrica Metal Leve, três dias após a abertura do edital de convocação para inscrição de chapas foi mais uma vez exonerado. Então teve que procurar emprego correndo para concorrer a uma chapa e conseguiu mediante “cartucho”, entrou na fabrica “biônico”, na fábrica de fogões, Brás. Demorou seis meses para adquirir confiança dos operários. Participou de uma greve que durou 26 dias, depois que o patrão matou um operário a tiro, porque ele tinha batido na porta do seu escritório exigindo pagamento das horas extras realizadas. Nesta greve liderada por Santo, o movimento paredista teve apoio de estudantes e da igreja que forneceu mantimentos para os grevistas continuarem com os braços cruzados e as máquinas paradas. Resultado: Santo foi mandado embora no terceiro dia da greve.

 

Nas lutas sindicais, Santo era favorável a construção da CUT, a formação do PT, e ao contrato coletivo de trabalho. Admirava Lula, mas não sem fazer críticas. Afinal, quando Paolo Nosella o perguntou quais seriam as pessoas mais importantes da sociedade brasileira, ao justificar a resposta sobre Lula, Santo disse:

 

“Bom, [Lula] é importante devido à posição que este companheiro assumiu com relação ao desenvolvimento da luta da classe operária. Foi um companheiro que contribuiu, embora com algumas ressalvas, com alguns erros, mas contribuiu para o avanço do movimento operário." (p. 105)

 

Enquanto Lula se tornava uma liderança do ABC paulista, Santo Dias se destacava em São Paulo. Nessa comparação, Santo Dias obteve ódio declarado do regime, sendo assassinado pelas costas em outubro de 1979, quando o PM Herculano Leonel o baleou covardemente, durante uma panfletagem em piquete de greve, na frente da fábrica Sylvania. A vitória operária vingará a sua morte.

 

 


41 anos de morte de Santo Dias - Entrevista com Luciana Dias, filha de Santo


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREDERICO, Celso. A imprensa de esquerda e o movimento operário (1964-1984).  São Paulo: Expressão Popular, 2010.

NOSELLA, Paolo. Porque mataram Santo Dias. Quando os braços se unem à mente. São Paulo: Cortez Editora, 1980. 

 

Sobre o autor:

 


Rafael Freitas: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo  de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e apresentador do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada.

 

 

 
 

 

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