CABEÇA DE PORCO


“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”

Aluísio Azevedo, O cortiço.




Não muito longe do naturalismo de Aluísio de Azevedo, na sua famosa obra O cortiço, está a realidade histórica das moradias populares e precarizadas do Brasil. Os cortiços são moradias, estalagens, com quartos para alugar.

O Rio de Janeiro, que foi capital do Brasil de 1764 até 1960, viu surgir ao longo dos anos cortiços e favelas. Locais onde viveram ex-escravizados, trabalhadores pobres e informais, prostitutas, imigrantes, “malandros” e traficantes. Lar dos marginalizados pelo poder público, que por séculos faz questão que não pensar em uma reforma urbana radical, que dê o mínimo de condições de vida e lazer para essa grande parcela da população brasileira. Os governos, como sempre, reféns de especuladores imobiliários e incorporadoras. Cortiços e favelas também são locais símbolos de resistência. Um dos mais famosos cortiços da cidade do Rio de Janeiro foi o icônico “Cabeça de Porco”.



A história da maioria desses cortiços, inclusive do Cabeça de Porco, tem algumas semelhanças: construídos geralmente por portugueses em áreas mais centrais da cidade. Pela localização, esses cortiços eram muito procurados por aqueles que não tinham condições de pagar alugueis mais caros. Segundo o site Rio Memórias: “Nas décadas de 1850 e 60, essas habitações se multiplicaram. Em 1868, só na freguesia de Santana (onde o Cabeça de Porco ficava), havia mais de 150; em 1884, na mesma região, o número de cortiços chegava a 392.”1

Sobre o Cabeça de Porco em particular, ainda se encontram as seguintes informações no site: “Entre todos os cortiços, o Cabeça de Porco veio a se tornar um dos mais famosos e populosos: estima-se que lá moravam cerca de 2 mil pessoas. No portão frontal, uma cabeça de porco trabalhada em ferro ornamentava a entrada. Quase um bairro, a estalagem contava com um longo corredor central, duas alas com mais de cem casinhas e outras ‘ruas’, com mais casas. A parte de trás dava para o atual morro da Providência.”

Ao mesmo tempo que os cortiços cresciam, havia uma mentalidade nova surgindo entre a elite política e os ricos da cidade do Rio de Janeiro: queriam transformar a cidade de acordo com o modelo da capital mais moderna e luxuosa da época – Paris. Com isso, uma confusão de ideias (higienismo social, darwinismo social, urbanismo e arquitetura) dava o embasamento para políticas públicas que tinham por objetivo mudar a cara da cidade. A grande inspiração para esses políticos foi o prefeito de Paris, Georges-Eugène Haussmann, o Barão Haussmann, conhecido por realizar a reforma urbana da capital francesa, sob o governo de Napoleão III, entre 1853 e 1870.

Aqui no Brasil, quem ficou responsável por colocar em prática as políticas inspiradas nas “reformas urbanas” foi, primeiramente, o prefeito Cândido Barata Ribeiro. Natural de Salvador, Barata Ribeiro se formou em medicina no Rio de Janeiro; talvez daí seu conhecimento sobre o higienismo. Republicano e abolicionista, Barata Ribeiro foi nomeado prefeito do Rio de Janeiro (na época Distrito Federal), em 1892, pelo presidente Floriano Peixoto.

Em 1893, disposto a acabar com instalações anti-higiênicas, e, claro, pressionado por especuladores imobiliários, Cândido Barata iniciou sua política do “bota a baixo” - essa política seria radicalizada entre os anos 1900 e 1910, durante a gestão do prefeito Francisco Pereira Passos.

Os moradores do Cabeça de Porco, sem opção, pegaram tudo que puderam de seus pertences e fugiram para o Morro da Providência, que também vai abrigar refugiados da Guerra de Canudos – mais tarde renomeado de Morro da Favela; e a palavra favela ganhou seu conceito de moradias precárias e miseráveis.

Sobre o episódio, Angelo Agostini, célebre desenhista, escreveu com ácida ironia em sua Revista Illustrada: “Quem suporia que uma barata fosse capaz de devorar uma cabeça de porco em menos de quarenta e oito horas? Pois devorou-a alegremente com ossos, peles e carne: sem deixar vestígio. […] Não há dúvida, uma barata que engole um porco pela cabeça, merece um foguetório fantástico, nunca visto. Fogo nela!”2

A "barata" que Agostini se refere é, obviamente, Cândido Barata.


Cabeça de Porco em 1880. Foto de Marc Ferrez. Fonte da imagem: https://riomemorias.com.br/memoria/cabeca-de-porco/




NOTAS

2 Site que disponibiliza parte do acervo da Revista Illustrada digitalizado: http://memoria.bn.br/pdf/332747/per332747_1893_00656.pdf




Sobre o autor:

 
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Pesquisa sobre História Social da América e Educação. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Professor de História e Geografia. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.

Um comentário:

  1. Governos n são reféns d especuladores imobiliários e incorporadoras. Eles quando n são os próprios empresários eleitos, são lobistas diretos e mentores d "programas habitacionais populares".

    A problemática d direito a habitação p a classe dominada nunca será solucionada dentro da lógica d reprodução capitalista.

    As favelas - comunidades -, além d se expandirem pelo país como símbolo d contradição e territorial social d apartheid, gueto da parcela massivamente negra, desempregada, baixa ou nenhuma escolaridade; mas sobretudo passaram a ser ponto d tensão política e socioeconômica entre as classes. Passaram a ser "barril d polvora", prestes a explodir c a agudização das lutas d classes.

    P tentar retardar e/ou "conter" essa rebelião social, governos burgueses "tapam sol c peneira", eleitoreiramente à partir d programas habitacionais populares, cohab, minha casa minha vida, minha casa verde amarela, através d planos d pagamentos em condições custos/juros financeiros ainda inviável e distante p uma outra parcela das classes dominadas. Segue e seguirá só c o "sonho da casa própria"...

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