Coluna Tistu Matos da Silva: O que fazer com o que o academicismo vazio fez de nós?


Primeiro, e acima de tudo, não nos iludamos! Saber acadêmico é saber institucionalizado, portanto, sequestrado, domesticado...

Ele deve parecer radical, mas apenas para oferecer algum vago: ”devemos mudar nossa perspectiva sobre...”, “devemos mudar as estruturas de...”, etc. sempre deixando entredita a palavra maldita que, salvo exceções, só aparecerá como uma caricatura vulgar: REVOLUÇÃO!



Revolução reduzida a uma “tomada de palácio”! Revolução reduzida à “estatização da sociedade”! Revolução devidamente devolvida ao “papai branco” para ser reduzida ao “eurocentrismo” enquanto as contribuições ao marxismo de autores da Ásia Central, China, Coréia do Norte, Vietnã, África e América (tanto a latina quanto das lutas dos Panteras negras nos EUA) são devidamente ignoradas, transformadas em “dogmatismo” (mesmo que as várias experiências possuam uma rica divergência teórica entre elas) ou postas na conta da “submissão ao colonizador” mesmo quando oferece contribuições originais! TODA E QUALQUER IDEIA EUROPÉIA, frente a outra realidade pode se tornar e se tornará outra coisa... menos o TOTALITÁRIO MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO! Esse será europeu, elabore-o quem o elabore, até porque a academia o tornará uma “deturpação” (e essa deturpação será QUALQUER leitura do marxismo que tenha resultado em uma revolução: irônico, não?) e sempre estará pronta para chamar um Althusser, um Luckács, um Badiou, etc. para corrigir as “distorções” desses asiáticos, africanos e latinos que REALIZARAM REVOLUÇÕES que os europeus não tiveram COMPETÊNCIA para realizar! Mas o que importa? Nunca era a “nossa revolução” segundo um graduado branco bancado pelo papai! E quando, por acaso, surge um José Carlos Mariatégui cujas contribuições originais não podem ser ocultadas sob o “fracasso do socialismo real”...

Ah! Transformamos em “um dos nossos”, ou seja, mais uma vez domesticamos, castramos, higienizamos e o afastamos do sujo “materialismo histórico e dialético” que, aliás, ELE APLICA EM SUAS ANÁLISES!

É preciso deixar o intelectual com a ilusão de uma utopia saída do nada para que esta possa ser preenchida com uma versão bonitinha do liberalismo ou jogá-lo na fossa imunda do niilismo! Pouco importa! O que importa é reduzi-lo à impotência! (para o povo já temos religião, moralismo, entretenimento, repressão, educação e saúde sucateadas e superexploração!) E se algo parecer fugir do comodismo e ter o risco de afetar o mundo concretamente no sentido de uma ruptura com o sistema atual... Ou é pouco rigoroso, ou coisa velha em nova embalagem, ou afetará alguma sensibilidade minoritária direta ou indiretamente (principalmente a minoria privilegiada de tais minorias, já que é aquela que pode cursar uma universidade) ou vamos revirar essa merda do avesso para impedir que cause estragos e torná-la outro “pensamento radical e controverso” que vai do nada a lugar nenhum!

Definidos os limites do que sai da cloaca acadêmica... Algo daí pode ser resgatado e devolvido à vitalidade do livre-pensamento ou a única alternativa é um irracionalismo igualmente estéril? Uma das poucas exceções dessa câmara mortuária superestimada é o professor Walter Lippold e o aspecto mais interessante de sua obra é o resgate, pelo marxismo, de reflexões sobre a colonialidade do saber e o excitante aqui é que há, de um lado, a abertura para linkar as análises sobre o pensamento de Frantz Fanon, a revolução científica como um fenômeno que envolveu a contribuição de múltiplas culturas (àrabes, chineses, japoneses, africanos, etc.), reflexões sobre o capitalismo em sua etapa atual, especificidade das experiências revolucionárias nos países subalternos sem apelo aos “especialistas europeus” em revolução não-realizada, etc.

                                                    Professor Walter Lippold


Ora! Dirá a Academia! Em Fernando Coronil há a ideia da origem do capitalismo como um produto das relações coloniais na América Latina e em Anibal Quijano, o trabalho assalariado nasce da necessidade de separar brancos das demais etnias na América colonial, ou seja, este tipo de abertura está presente no pensamento puramente acadêmico e pode e DEVE ser resgatada da perspectiva acadêmica! Porque, uma vez sequestradas pela academia, o caminho dessas contribuições é serem “elevadas” a uma qualquer abstração: uma “nova sociabilidade” abstrata, uma mudança de “perspectiva” ou “paradigma” abstratas, enfim... uma abstração qualquer destinada a morrer nas páginas de uma tese depois de outra “mudança de paradigmas ultrapassada” que também já havia morrido nas páginas de outra tese... Isso, ou a apropriação de conceitos abstratos para uma ação política centrada no puro abstrato, ignorando as questões político-econômicas concretas por uma luta “pela subjetividade”, ou por uma “nova cultura”!


No resgate do pensamento de Fanon em Walter Lippold, essa abstração já não é mais possível:

“O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos policiais. Nas colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, do porta-voz do colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado. (...) Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, em contrapartida, o policial e o soldado, por sua presença imediata, suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e lhe aconselham com coronhadas e napalm que fique quieto. Como vemos, o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário leva a violência para as casas e para o cérebro dos colonizados” (Frantz Fanon)

Isso é um pensamento sob as bombas, isso é a revolta feita pensamento! Não se nega que o poder “crie subjetividade”, “Crie corpos dóceis” (Foucault), mas esta é a visão do underground do sistema, a visão de quem não choruminga com algoritmos da internet ou exige o “lugar de fala” que tira de outros. Esta é a versão do corpo humilhado, torturado, metralhado, mutilado, exausto da base do sistema. Essa não é a exigência de “estatização de todos e cada um dos âmbitos do poder e da vida social” na qual Aníbal Quijano julgou definir o marxismo, mas uma força que transforma revolta em VIDA, em EXPERIÊNCIA EXISTENCIAL porque lhe dá mais que uma vaga proposição de “nova sociabilidade” (que pode ser qualquer coisa), mas outro mundo oposto a esse e cuja materialidade torna possível seu aperfeiçoamento, a partir do estudo de suas limitações! Que diferença em relação à solução dada pela “multidão de professores de moral, de conselheiros, de ‘desorientadores’” da Academia para os descendentes dos falecidos e silenciados colonizados da América:

“(...) se se pretende a superação da “Modernidade” será necessário negar a negação do mito da Modernidade. Para tanto, a “outra face” negada e vitimada da “Modernidade” deve primeiramente descobrir-se “inocente”: é a “vítima inocente” do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a “Modernidade” como culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial (Enrique Dussel)... E ADIVINHA! Da má consciência se revela a alteridade (como a “inocência” diante do “sacrifício ritual” revela o Outro em sua irredutível complexidade?) e seguimos em linha direta para uma “Trans-Modernidade” que nega a “razão emancipadora” (porque a julga “eurocêntrica”) e depois... NADA! Um abstrato “resgate da dignidade do Outro” (como vítima?), uma cultura baseada em culpa cristã (ah! Claro! Sempre saíram coisas maravilhosas disso!) e a dominação capitalista? Vai bem, obrigado! Já não estamos nesse joguinho há uns 20 anos?

Como a culpa pode ser abertura para qualquer coisa? Culpa é o resultado de um julgamento e um julgamento só tem duas soluções de continuidade: a rejeição do que se SABE ser ruim ou a afirmação do que se SABE ser bom. Nada “novo” no front! E pior! Quanto menos referências temos para saber o que é o bem e o mal (E esse é o caso!), mais aleatória, manipulável e raivosa é a moral, mais tragédias novas ela causa (inclusive a de mandar pro espaço a “alteridade” e o “resgate da dignidade do Outro”, os únicos ganhos da “Trans-Modernidade”) e menos capacidade temos de criar mecanismos para impedir tragédias já conhecidas: basta para isso acirrar o emocionalismo (era isso a “nova subjetividade”?) e a irracionalidade (afinal, a “razão emancipadora” e, no limite, a “razão” são “eurocêntricas”!) dos argumentos contra e a favor de uma causa. Se não me engano, empoderar uma extrema-direita para forçar uma violenta polarização política foi uma estratégia muito bem sucedida nesse sentido! Acrescente que qualquer tipo de “razão emancipadora” entra nesse julgamento como ré... E durma-se com um barulho desses! Falando seriamente, com certeza não sai nenhuma “Trans-Modernidade” ou qualquer “sociabilidade nova” cada vez mais abstrata daí, porque do nada, nada sai! Só o império do senso-comum, e como este é desde sempre inimigo da inquietação, da curiosidade e da criação, voltamos aos tempos dos livros banidos ou com censura prévia, à limitação de toda liberdade artística (afinal de contas, tudo é produto e o cliente tem sempre razão!) ou de manifestação de ideias pelo temor de “ofender” alguém (geralmente alguém com a mesma mediocridade e estreiteza mental que essas ideias pretendiam mesmo ofender!), etc.

Como seria possível que, de um ambiente conservador, onde as ideias não circulam livremente, saia qualquer sociedade além da já existente? E é preciso, nesse ponto, lembrar que a sociedade existente é a que foi construída com os valores e técnicas de dominação do que Enrique Dussel chama de falsa “Modernidade” eurocêntrica? (Sendo justo, Santiago Castro-Gómez foi mais perspicaz na compreensão desse processo, mas tentou livrar a cara da pós-modernidade das críticas pós-colonialistas, então... já viu onde isso foi dar, né!)

Poderia continuar essa análise, mas tirando alguns bons insights de Fernando Coronil que mereceriam uma leitura a parte, todo o resto é a análise do saber/poder foucaultiana requentada com a palavra “colonialidade”, com a grandeza relativa e a profunda miséria desta, associada a loas às ações institucionais das ciências sociais (chaaato!) e um blá-blá-blá sobre saber local do Arturo Escobar que eu não tive saco de ler até o fim (chato, chato, chaaato!) e eis “A colonialidade do saber- Eurocentrismo e ciências sociais- Perspectivas latino americanas- Até o nome dessa joça é um tese de doutorado”.

Quanto ao título desse ensaio: a resposta é perceber que a Universidade é uma instituição burguesa. Sim! É o óbvio ululante! Qualquer aluno de graduação te diria o mesmo e ainda assim reproduziria o fetiche do “novo paradigma”... “Nosso saber é da rua!” diz a Universidade! Então nós que estamos na rua exigimos de volta o que NÓS criamos e vamos tornar esse saber motor para a ação CONCRETA! ”Queremos a práxis com vistas a mudar o mundo” diz a Universidade! Então vamos parar de tentar inventar a roda e só causar confusão e vamos rever as experiências que REALMENTE causaram mudanças no mundo, compreender seus limites, aperfeiçoa-las no que foram falhas e reatualizar o que houve de positivo! Voltemos ao materialismo histórico-dialético no que ele REALMENTE foi e não no que Aníbal Quijano acha que ele é! Voltemos às experiências libertárias e contraculturais como PRÁTICAS e não objeto de análise! Abandonemos a obsessão pelo “mais novo paradigma”, pelo “mais novo conceito”, pelo “mais novo artigo no museu de grandes novidades”... Se há algo realmente novo, gerou um novo conjunto de práticas, não uma nova tese de doutorado ou uma “ação política” puramente conceitual! Quero o irracionalismo? Por que ia querer o que eu já tenho? E eu não precisaria nem atacar a Universidade: ela tem um enorme estoque disso pra me oferecer! Quero o saber buscando a prática na vida e não nos livros! Criando-se como saber enquanto bebemos, fodemos, sabotamos, destruímos e recriamos para fazer isso ainda melhor sabendo porque fazemos e contra o quê fazemos!

“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
(Karl Marx, teses sobre Feuerbach,1845)

Sobre o autor:


TISTU MATOS DA SILVA: Professor de Filosofia. Autor de  "Fragmento do caderno de notas do dr. Mehr Diñas". 

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