A SANTA DEGOLADA: O imaginário popular sobre a “Maria Degolada” em Porto Alegre

 

Existe uma lenda, há muito difundida, sobre a assombração de uma mulher que aparece em espelhos. Essa lenda, de origem inglesa, ganhou versões em vários países, adaptadas a suas realidades históricas. Aqui no Brasil são comuns as lendas urbanas sobre a “Maria Sangrenta” (Bloody Mary, no original). Na região sudeste, temos a “loira do banheiro”, uma entidade que assusta aqueles que, nos banheiros escuros, chamam seu nome 3 vezes em frente ao espelho. No Rio Grande do Sul, a variação dessa lenda urbana traz a figura da Maria Degolada. Contudo, no caso gaúcho, a Maria Degolada ganhou contornos muito diferentes. A Maria Degolada foi na verdade a vítima de um crime, um feminicídio, em uma época na qual a palavra e seu conceito ainda nem existiam. De vítima a assombração e santa popular, a história de Maria Francelina Trenes é, sem dúvida, uma das mais marcantes no imaginário popular de Porto Alegre.


Desenho da Maria Degolada, por Fábio Melo


O dia 12 de setembro de 1899 estava perfeito para um piquenique. A transição do frio inverno gaúcho para a primavera trouxe dias agradáveis, de temperaturas amenas. Aproveitando este clima, a jovem Maria Francelina Trenes, de 21 anos, e seu amante, Bruno Bicudo, um soldado da Brigada Militar, resolvem passear no alto do famigerado Morro do Hospício, onde fariam um piquenique com alguns conhecidos. Apesar do nome, o lugar é calmo, com grama verde e uma bela vista da cidade; inclusive para o recém-inaugurado Hospício São Pedro, abrigo dos alienados da época – prédio que, devido à sua imponência, deu nome ao morro bem à sua frente.

Em dado momento do passeio, Bruno e Maria discutiram. O piquenique que deveria ser prazeroso e agradável virou uma tragédia sanguinolenta. O militar, irritado e tomado por ciúmes incontrolável, sacou uma faca e degolou Maria. O sangue da jovem jorrou por seu pescoço, encharcando seu corpo e respingando na grama. Em instantes, ela falecera, na sombra de uma figueira. “O crime teve grande repercussão na imprensa local, jornais como o Jornal do Comércio, o Correio do Povo e a Gazetinha noticiaram o caso com grande horror, todos comovidos pela moça que fora brutalmente assassinada. Em uma cidade que, nessa virada de século, estava ficando cada vez mais urbanizada e povoada, um crime desse porte era considerado um ato de barbárie.1

A degola, ao que parece, era uma forma bastante disseminada de assassinato na época. Isso porque o estado do Rio Grande do Sul passou por uma violenta guerra civil entre 1893 e 1895, que acabou entrando para a história com o nome de “guerra da degola”, devido a prática que se tornara comum ao longo do conflito para eliminar inimigos. Talvez o próprio Bruno tenha lutado nesta guerra civil, afinal, era brigadiano e a Brigada Militar do RS foi uma importante e combativa força militar que lutou ao lado do governo estadual na época. Com efeito, o crime, o feminicídio de Maria Trenes, se misturou ao espírito da época para moldar a lenda.

Sobre as origens do assassino e da vítima pouco se sabe. Bruno Bicudo era de Uruguaiana, cidade fronteiriça, e consta que era analfabeto. Maria Francelina Trenes teria nascido na Alemanha, em 1878. Em Porto Alegre, diz-se que era uma prostituta.

O feminicídio de Maria Francelina Trenes ganhou contornos inesperados na cultura popular de Porto Alegre. Além de se tornar uma espécie de “Bloody Mary” local, cujo nome pronunciado na frente de um espelho é capaz de evocar seu espírito assombrado, Maria Trenes alcançou um status de santa. É o que atesta o pequeno santuário dedicado a ela, localizado no suposto local de sua morte. Hoje (2025) o local já foi engolido pela urbanização desregrada da capital gaúcha. Situado no bairro Partenon, na rua Irmã Nely, o Memorial Maria Francelina Trenes foi construído ao pé da figueira, na qual Maria teria tombado morta e degolada. “A gruta da Maria Degolada está com o muro pintado em azul celeste, o telhado em amarelo e o portão em branco. Mais de 80 placas com agradecimentos por graças alcançadas podem ser vistas nas paredes. […] No passado, a grutinha era ponto de romarias e peregrinações. Os devotos levavam flores e acendiam velas para a santa popular. Atualmente, as visitas são menores e ocorrem especialmente em datas como Dia de Finados, das Mães e dos Pais. O acesso ao espaço é gratuito.”2 Por ter sido morta por um brigadiano, a crença popular diz que a Santa Degolada só não atende os pedidos vindos de membros dessa corporação.

Após o crime, Bruno foi expulso da Brigada Militar e condenado a 30 anos de prisão na antiga Casa de Correção de Porto Alegre. Morreu em 1906, na prisão de uma doença infecciosa nos rins. Maria Trenes foi sepultada no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

O crime incorporou aspectos de outras culturas. Virou lenda e tornou Maria Trenes uma santa e uma assombração. Qual criança ou adolescente não se sentiu assombrado nos tempos de escola pelo fantasma da “Maria Degolada”? Essa mistura dentro de um imaginário popular pode ser entendida dentro do conceito de “circularidade da cultura”, tal como exposto pelo historiador Carlo Ginzburg em seu livro O queijo e os vermes: “entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas existiu, […], um relacionamento circular feito de influências recíprocas, […] (GINZBURG, 2006, p. 10).

A santa degolada, a assombração terrível da Maria Degolada, sua morte precoce que comoveu a cidade toda é, sem dúvida, uma das características de uma espécie de sincrestismo brasileiro, capaz de adaptar, misturar e promover uma circularidade cultural como poucos lugares no mundo.


NOTAS:


FONTES DE PESQUISA:

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626826-maria-degolada-a-historia-de-um-dos-feminicidios-mais-famosos-de-porto-alegre



Sobre os autor:

 
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Professor de escola pública. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Desenhista amador, tem um blog sobre quadrinhos, com resenhas e ênfase em histórias autorais: https://guerrilhacomix.blogspot.com/

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