É preciso fazer importantes considerações quando se estuda a vida, o trabalho e a cultura dos operários no Brasil, durante as primeiras décadas do século XX. Primeiramente, o nosso atraso industrial. Se comparado com países da Europa Ocidental (Reino, Unido, França, Bélgica, Alemanha) e Estados Unidos, a indústria no Brasil surgiu um século após o seu desenvolvimento no núcleo capitalista euro-americano. E, ainda assim, a gestação industrial brasileira ocorreu de forma dispersa no território brasileiro. Isso porque, as pequenas e médias empresas que saíram da manufatura e se tornaram indústrias foram se estabelecendo como espécies de “ilhas” em um espaço geográfico ainda muito influenciado e moldado para a economia agroexportadora. Antes de 1930, e das políticas fomentadoras/organizadoras da indústria brasileira no governo de Getúlio Vargas, as poucas indústrias no país se localizavam em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Haviam também na região Nordeste, na Bahia, Pernambuco e Paraíba, mas em número muito menor.
Esse atraso tecnológico, fez com que os equipamentos utilizados no Brasil, fossem defasados em relação aos países pioneiros. Por exemplo, enquanto na Europa e Estados Unidos, na segunda metade do século XIX, as indústrias começaram a produção de aço (siderúrgicas), aqui recém chegavam as primeiras máquinas têxteis movidas a água ou vapor; por isso, as primeiras indústrias a se desenvolver foram do ramo têxtil e alimentícia. Cem anos fizeram muita diferença no que se refere ao domínio das tecnologias de ponta em cada época, ou fase da revolução industrial.
Diante disso, é preciso que também fique claro que, se por um lado não haviam tantas indústrias no Brasil, por outro, os operários que trabalhavam nelas também eram em um número muito pequeno, em relação ao total da população da época. Ainda mais se levarmos em conta que a própria indústria se desenvolveu como economia ligada a exportação agrícola brasileira, a principal matriz produtiva do nosso país. Sendo assim, também é preciso levar em conta que os limites e dificuldades na expansão e diversificação industrial, antes de 1930, são impostas pela matriz econômica agroexportadora.
Também não haviam apenas os trabalhadores industriais naquele início de século XX. Havia também uma forte tradição do setor de serviços estabelecido no Brasil. Barbeiros, alfaiates, sapateiros, costureiras, estivadores, operários da construção civil, domésticas e marmoristas. Esses trabalhadores nem sempre estavam ligados a uma indústria, mas foram os principais difusores de ideias socialistas, anarquistas e revolucionárias.
Outra questão importantíssima a ser pontuada é a escravidão. Bem sabemos que o Brasil teve na escravidão a principal fonte de mão de obra ao longo de mais de 300 anos. Os escravizados também eram imprescindíveis na produção agrícola dos principais itens destinados a exportação, como açúcar e café; além da mineração. Formalmente, a escravidão amparada por lei terminou no Brasil em 1888. Mas os ex-escravizados, não foram imediatamente absorvidos como trabalhadores assalariados nas nascentes indústrias. Ao contrário. Foram forçados a vender sua força de trabalho em serviços dos mais variados, desde trabalhos domésticos até se sujeitar a trabalhar nas terras de seus antigos senhores, apenas para ter um sustento. Enquanto isso, muitos alemães e italianos, foram absorvidos como operários pelas poucas e nascentes indústrias, sendo que muitos desses imigrantes já tinham vivido uma realidade industrial avançada na Europa – por isso, representavam mão de obra qualificada para o trabalho industrial.
Após essas importantes considerações, que retratam um panorama estrutural sobre o início da industrialização no Brasil, vamos nos ater ao recorte espaço temporal da cidade de Porto Alegre, entre 1890 e 1906.
Belle époque gaúcha: Porto Alegre no início do século XX
Os governos estadual e municipal estavam empenhados em modernizar Porto Alegre no início do século XX. A capital do estado deveria parecer uma cidade preparada para o progresso, dentro de um racionalismo científico existente na época, cuja principal influência no Rio Grande do Sul era o modelo positivista – logo, o modelo de racionalidade e modernidade era Paris.
Segundo um observador da época: “Porto Alegre assenta sobre largas ruas bem alinhadas e praças em geral arborizadas, possuindo um regular sistema de viação férrea urbana, bonds de tração animada, prestes a ser substituída pela elétrica. Seu movimento comercial é notável, pois que ele é o entreposto da zona colonial ao nordeste do estado, cuja produção deriva pelos vales do Caí, Sinos, Taquari e Jacuí, que vem todos afluir ali” (PETERSEN, 2001, p. 181).
Algumas fontes mais confiáveis apontam que Porto Alegre tinha cerca de 52.156 habitantes, em 1890. Havia, nesta época, significativo número de imigrantes. Destes, “os alemães eram mais numerosos que os italianos, esses talvez uns 10% da população. Nesta época, a maioria dos trabalhadores da cidade eram imigrantes ou descendentes e artesãos qualificados. Já então máquinas começaram a ser importadas e introduzidas nas fábricas de fiação e tecelagem ou de produtos alimentícios. Os cronistas referem-se a um período de rápido crescimento urbano e o norte da cidade se tornará o ‘distrito industrial’, porque aí vão se localizar as principais oficinas e fábricas” (PETERSEN, 2001, p. 28).
Se analisarmos um mapa da cidade, os bairros operários de outrora correspondem aos atuais bairros de Navegantes, Floresta e São Geraldo. Um mapa de 1906 mostra como era Porto Alegre no início do século. Perceba os prédios, inspirados na arquitetura francesa à época. A moradia dos operários, porém, não eram nem um pouco luxuosas, eram precárias, sem saneamento adequado e pouca iluminação.
Em meio a cidade se transformando, surge o espaço industrial. Vejamos alguns dados referentes às principais indústrias existentes na cidade naquela época:
Cia. Fiação e Tecidos Porto-Alegrense. Fundada em 1891. 300 operários.
Companhia Fabril Porto-Alegrense. Empresa que fabricava camisetas e meias. Fundada em 1891. 320 operários, masculinos, femininos e crianças.
Jung, Secco & Cia. Fábrica de Fósforos. Fundada em 1894. 140 operárias e 60 operários.
J. Pabst & Cia. Fábrica de gravatas e espartilhos. 120 operários, masculinos e femininos.
Otero, Gomes & Cia. Fábrica de banha. 35 operários.
José Becker & Irmão. Estaleiro e fundição. Fundado em 1850. Construiu vapores, lanchas, máquinas a vapor, serragens, moinhos, prensas e fundição. 100 operários.
Alberto Bins/Emmerich Berta & Cia. Fundada em 1873. Fabricou fogões, cofres, camas metálicas, prensas para copiar e outros utensílios de metal e ferro como fechaduras e baldes. 260 operários. O alemão Pedro Wallig era sócio da companhia e em 1904 abriu uma outra empresa, a Pedro Wallig & Filhos, com apenas 5 funcionários, dando origem a uma lucrativa empresa de fogões.
Kappel & Arnt. Fundada em 1867. Fabricava móveis. 200 operários.
Francisco Herzog. Fabricava móveis. 110 operários.
Bopp & Irmãos. Fábrica de cerveja e gelo. Fundada em 1886. Possuía cerca de 15 operários.
Além destas, haviam alguns tipos de fábricas nas quais ainda não haviam um maquinário pesado, mas que exigia mão de obra especializada. Era o caso das marmorarias, onde artesãos eram contratados para trabalhar enquanto havia demanda para alguma grande obra. Esse era o caso da marmoraria de Jacob Aloys Friedrichs, cujos trabalhadores, com suas reivindicações por redução da jornada de trabalho, iniciaram a greve de 1906.
Também é preciso levar em consideração os trabalhadores do comércio, atendentes, confeiteiros, como os trabalhadores da famosa Confeitaria Rocco. E os ligados a serviços, como barbeiros, costureiras, sapateiros, estivadores, gráficos, operários da construção civil e domésticas. Não se tem números exatos sobre esses trabalhadores do comércio e serviços, mas pode-se estimar em cerca de 2 ou 3 mil no total.
“Em Porto Alegre, em 1906, muitos trabalhadores estavam ainda acostumados a trabalhar em pequenas oficinas de artesãos, em escalas humanas, com possibilidade de serem promovidos de operário a mestre e frequentemente com relações sociais paternalistas. Mas alguns deles estavam ingressando nas grandes fábricas pela primeira vez, com maquinofatura, substituição de trabalhadores não capacitados e relações sociais mais hierárquicas e disciplinadas. O primeiro crescimento significativo na produção da região ocorreu nos anos de 1890 quando os pequenos produtores rurais, imigrantes italianos e alemães começaram a acumular capital para iniciativas e se tornaram um mercado para os produtos industrializados. Apesar de negros e mulatos formarem a terceira parte da população urbana nos anos de 1890, a maioria (em torno de 5 mil trabalhadores das fábricas e oficinas) era de artesãos do sexo masculino, brancos e qualificados, principalmente imigrantes europeus ou seus descendentes” “BAK, 2003, p. 185).
Social-democratas e anarquistas
Em meio a essa efervescência econômica da instalação das indústrias, os operários fabris, os do setor do comércio e de serviços foram influenciados politicamente pelos imigrantes alemães e italianos. Da Europa, os imigrantes trouxeram as ideologias social-democrata e anarquista.
Organizações, como partidos e sociedades de ajuda mutua, foram criadas entre 1890 e 1906 na capital gaúcha. Entre elas estão a sociedade Allgemeiner Arbeiter Verein (Sociedade Geral dos Trabalhadores), fundada em 1892, primeira entidade a comemorar o 1 de maio em Porto Alegre, no ano de 1896. A Liga Operária Internacional, fundada em 1895; a União Operária Internacional, fundada em 1897 (após um racha na Liga). Em 1898, foi fundada a Confederação Operária Sul-rio-grandense, durante um congresso operário. Todas essas têm inspiração social-democrata, ou seja, influência alemã.
Em 1897, tanto a Allgemeiner quanto a Liga Operária vão participar da fundação do Partido Socialista do Rio Grande do Sul, que como o próprio nome elucida é de inspiração social-democrata.
Para a divulgação das ideias vinculadas às ideologias políticas, jornais eram publicados. Destes o mais famoso foi o Echo Operário, fundado em 1896, primeiro na cidade de Rio Grande, se tornou o jornal do Partido Socialista em 1898, sob a inspiração da Segunda Internacional europeia. Além deste, temos os periódicos A Voz dos Oprimidos, de 1903, e A Democracia, fundado em 1905.
Mesmo que a influência social-democrata fosse abrangente entre a classe trabalhadora, os anarquistas também tiveram importante papel na organização operária da época. No Rio Grande do Sul, essa influência se deve ao fim da famosa Colônia Cecília, no Paraná, ocorrido em 1893. A experiência anarquista paranaense, foi influenciada pelo imigrante italiano Giovanni Rossi. Com o fim da colônia, alguns de seus membros vieram para o Rio Grande do Sul, na época o estado era um forte núcleo de colonização italiana, principalmente na região da serra gaúcha. Um dos nomes mais importantes, nesse período de gestação do anarquismo em Porto Alegre, foi Guiseppe (ou José) Ferla. Depois do fracasso da Colônia Cecília, radicou-se em Porto Alegre, onde constituiu família e se envolveu em atividades relacionadas ao movimento operário.
A crescente influência anarquista pode ser verificada com o surgimento da União Operária Internacional, em 1902. Em 1906 surgiu um jornal anarquista em Porto Alegre, chamado de A Luta, ligado ao Sindicato dos Marmoristas (criado durante a greve geral). Os anarquistas tiveram uma interessante iniciativa, em 1906 criaram a escola popular Eliseu Reclus, no centro de Porto Alegre, com o objetivo de formar trabalhadores nas diversas áreas do conhecimento, além de promover formação política.
Greve de 1906
Sob forte influência da social-democracia alemã e do anarquismo, estourou em 1906 a primeira greve geral dos trabalhadores urbanos de Porto Alegre, também conhecida como “Greve dos 21 Dias”. Foi a primeira greve geral da cidade que contou com número expressivo de trabalhadores a trabalhadoras. Cerca de 5 mil operários aderiram a greve.
O estopim para a greve geral foi a paralisação dos marmoristas da oficina de Jacob Aloys Friedrichs. Ainda no mês de agosto de 1906, os marmoristas reivindicaram 8 horas de trabalho por dia. A intransigência de Friedrichs em atender a demanda de seus trabalhadores, levou à solidariedade de toda classe operária porto-alegrense. Em setembro, vários trabalhadores aderiram a greve e organizaram sindicatos, seguindo o exemplo dos marmoristas; assim, surgiram os sindicatos dos metalúrgicos, dos pedreiros e dos chapeleiros.
Em 23 de setembro, houve uma grande demonstração de força do movimento grevista. Reunidos na Praça da Alfandega, no centro da capital, os principais líderes, entre os quais Francisco Xavier da Costa e Custódio Carlos (Cavaco) Araújo, que nos discursos mais inflamados clamavam pela “revolução dos trabalhadores”.
Do lado dos capitalistas, Alberto Bins acabou se tornando o principal antagonista dos operários, muito mais preocupado com a articulação patronal contra o movimento, inédito até então, do que com o bem-estar de seus trabalhadores. Bins, desde aquela época, representa a contraditória mentalidade de parte do empresariado brasileiro, que segue tendo uma mentalidade escravista e não quer que o trabalhador seja realmente livre.
Já era outubro quando a greve acabou. Seu fim se deve a exaustão do movimento, em meio a divergências entre anarquistas e socialistas. Apesar disso, foram conquistadas 9 horas de trabalho nas fábricas; exceto para os marmoristas que conquistaram as 8 horas exigidas. A própria longevidade da greve, que durou 21 dias, também pode ser apontada como um dos motivos de desgaste. Com o término da greve, houve perseguição aos principais líderes envolvidos, alguns tinham seus nomes anotados em cadernos compartilhados entre os principais industriais da capital, de modo que seus nomes ficassem marcados para não mais obterem empregos na cidade; uma humilhação por terem participado ativamente na luta por dignidade no trabalho.
Para além dos poucos ganhos imediatos, os ganhos políticos do movimento foram duradouros. O mais emblemático foi a criação da Federação Operário do Rio Grande do Sul (FORGS), importante associação de trabalhadores que vai organizar congressos operários ao longo dos anos 1910 e 1920, sob forte inspiração anarquista. Os anarquistas, ao que parece, vão ganhar a hegemonia do movimento operário, até o início da década de 1920, quando o comunismo se tornará forte – graças aos acontecimentos da Revolução Russa em 1917.
***
A greve de 1906 é um importante marco na história de Porto Alegre. Na ocasião, e pela primeira vez, uma confluência de ideologias e práticas organizou um movimento reivindicatório disciplinado, que só não foi bem-sucedido devido as suas próprias contradições internas. Levando em consideração o que foi posto no início do texto, os trabalhadores ainda estavam pouco preparados para luta por direitos ainda maiores, tais como uma legislação trabalhista robusta que garantisse direitos como salário mínimo, férias, aposentadoria. A utopia operária que se gestou em Porto Alegre, forjada a partir da greve de 1906, segue distante. As ruínas das lutas operárias de outrora, ecoam nos lugares, ruas, e, principalmente, na classe trabalhadora da atualidade – cabe despertar para uma nova luta!
FONTES DE PESQUISA:
BAK, Joan. Classe, etnicidade e gênero no Brasil: a negociação de identidade dos trabalhadores na Greve de 1906, em Porto Alegre. MÉTIS: história & cultura – v. 2, n. 4, p. 181-224, jul./dez. 2003.
BARTZ,
Frederico Duarte. Ilustração
para o 1º de maio do jornal "O Echo Operário" de Rio
Grande. HACER
- História da Arte e da Cultura:
Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em:
http://www.hacer.com.br/#!ilustracaooechooperario/nxm74
FIALHO, Daniela Marzola. A Planta de Porto Alegre (RS) de 1906. Disponível em:
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio2016/pdf/29DanielaFialho_3SBCH.pdf
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja nossa pátria!”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
Operários Alemães em Porto Alegre – Um percurso histórico pelos bairros Floresta e São Geraldo. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hCOFlMxre9U
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