Getúlio Vargas |
Parte da historiografia brasileira tende a “isolar” o povo dos principais acontecimentos políticos do Brasil. Um exemplo disso é a Revolução de 1930. Historiadores vinculados a um tipo de marxismo político, que não encontra eco na empiria histórica, colocam em seu livros que a Revolução de 1930 foi um mero movimento das oligarquias gaúchas, mineiras e paraibanas contra a hegemonia paulista. Mas é preciso que se diga: ela foi muito mais que isso.
Negar a participação popular na Revolução de 1930, como se toda revolução popular fosse mérito apenas de comunistas e seus segmentos, é negar o próprio povo – e suas divisões em classes sociais capazes de formular de forma consciente alternativas para melhorar suas condições de existência. Para comprovar que houve mobilizações populares, de diversos segmentos (da pequena classe média até de proletários) basta uma rápida análise nas fotos da época.
Fotos [1] do centro de Porto Alegre durante os eventos da Revolução de 1930. Essa multidão que apoiou os revolucionários era composta apenas por oligarcas?
É preciso que os historiadores entendam definitivamente: a Revolução de 1930 foi a mais popular da história brasileira.
Há também a versão que a Revolução de 1930 foi apenas uma consequência da crise de 1929; e, neste sentido, uma luta do capital inglês (representado por Washington Luis) contra o capital estadunidense (representado por Getúlio Vargas). É certo que a economia colonial brasileira estava por demais integrada ao mercado internacional como exportadora de matérias-primas: café, açúcar, algodão, borracha, etc. Mas não se pode esquecer que há interesses nacionais em jogo, e que tinham a capacidade de se articular e pressionar politicamente. Em outras palavras, a crise de 1929 contribuiu para a Revolução de 1930, mas por si só não a explica completamente. De acordo com Bóris Fausto, um dos poucos historiadores que tem um estudo sério sobre a revolução, “dependência externa, crise de 1929, disputa de grupos internacionais pelo controle da América Latina são elementos que, ao mesmo tempo, modelam o país e, quando aqui se refletem, são modelados pelas características específicas da sociedade brasileira”[2]
Quanto a Getúlio Vargas representar os interesses do capital estadunidense, parece uma leitura totalmente fora do contexto econômico da época. A crise de 1929, afetou, e muito, os Estados Unidos, que ao longo dos anos 1930 tiveram que elaborar um plano de reconstrução econômica com participação ativa do estado: o New Deal de Franklin Roosevelt. O imperialismo yankee se retraiu dando, assim, a oportunidade de vários países da América Latina buscar alternativas de desenvolvimento econômico, cujo primeiro passo foi a substituição de importações – a partir da expansão das industrias nacionais. E ao mesmo tempo diminuir os efeitos da crise. Ademais, a própria história absolverá Vargas dessa leitura equivocada de ser um arauto do capitalismo estadunidense; a criação de estatais e das leis trabalhistas, bem como sua incessante luta contra a espoliação estrangeira chegarão ao sua culminância nos eventos de 24 de agosto de 1954.
Se a Revolução de 1930 não foi apenas um movimento oligárquico, tampouco unicamente uma consequência da crise de 1929, então o que foi?
Foi tudo isso e mais um pouco. Foi um movimento de alguns membros da política oligárquica com apoio de trabalhadores, capitalistas e socialistas. Um movimento de setores das oligarquias dissidentes que para além de sua classe social e de seus interesses enquanto classe, tinham ideias progressistas e nacionalistas para os rumos da sociedade brasileira. Um movimento de industriais capitalistas que imbuídos destes mesmos ideias nacionalistas queriam se livrar das correntes econômicas que os prendiam à oligarquia liberal-conservadora paulista, cuja política era voltada para a valorização do único produto que os mantinha no poder: o café. Um movimento de trabalhadores que apostou nas leis sociais do trabalho que a Aliança Liberal lhes propunha – colocadas em prática ao longo da década de 1930 e consolidadas na CLT de 1943.
Vamos pensar historicamente. Para entender a Revolução de 1930, devemos entender a conjuntura da sociedade brasileira durante os anos da República Velha (1889-1930).
Em fins do século XIX, o Brasil era o único país da América Latina que tinha um regime monárquico e escravista. Em 1888 os escravos foram “libertados”, representando a primeira contra- revolução do país[3] - observe que no Brasil a contra-revolução veio antes da revolução. Um ano depois, por influência e articulação dos fazendeiros paulistas, liberais economicamente e conservadores socialmente, um golpe militar transformou o país numa república federalista. Um federalismo conservador. Os estados tinham tanta autonomia que os governadores se chamavam presidentes. Para se ter uma ideia não existiam partidos nacionais como nos dias de hoje; havia o Partido Republicano Paulista, Partido Republicano Mineiro, Partido Republicano Rio-grandense, Partido Republicano Paraibano... mas não havia um “Partido Republicano Nacional”!
Neste cenário, quem mantinha o poder econômico abocanhou o poder político. O café era a principal fonte de receitas para o país e o federalismo extremo anulava qualquer tipo de política de estado à nível nacional. Sendo assim, a oligarquia paulista, responsável pela produção do principal produto de exportação do país, articulava com outros estados para o jogo das eleições e pela manutenção de seus interesses.
Obviamente, esse sistema tinha tudo para se esgotar facilmente. Impressiona, entretanto, que tenha durado mais de quatro décadas. As oligarquias estaduais volta e meia mostravam seu descontentamento com a política federal nas mãos dos paulistas. Um exemplo disto pode ser encontrado na chamada “Reação Republicana”. Este movimento englobou os estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia, que lançaram Nilo Peçanha à presidência, no ano de 1922, contra o candidato da articulação paulista e mineira, Arthur Bernardes. Esta campanha presidencial foi uma das mais acirradas da República Velha, e os candidatos, percebendo a importância cada vez maior das cidades, não abriam mão de discursos dirigidos aos trabalhadores urbanos. Em um de seus discursos, Nilo Peçanha disse: “O mundo não pode ser mais o domínio egoístico dos ricos, e (...) só teremos paz de verdade, e uma paz de justiça, quando nas nossas propriedades (...) e nas nossas consciências, sobretudo, forem tão legítimos os direitos do trabalho como os do capital. Não é mais possível a nenhum governo brasileiro deixar de respeitar, dentro da ordem, a liberdade, a liberdade operaria, o pensamento operário.”[4].
Ainda no plano político, às insatisfações das oligarquias regionais se somam um movimento original que surgiu entre jovens oficiais do exército na década de 1920: o tenentismo. Explicar o fenômeno do tenentismo requer um texto a parte. Sendo assim, basta que fique claro aqui que o tenentismo pregava, em linhas gerais e não muito claras, uma espécie de moralidade no sistema político – uma das principais bandeiras dos tenentes era o voto secreto. Em 1922 ocorreu um levante tenentista no Rio de Janeiro contra o presidente Arthur Bernardes. Dois anos depois outro levante tenentista, em São Paulo e no Rio Grande do Sul daria origem a Coluna Prestes, que percorreu o interior do país, ameaçando, constantemente o governo federal. Com a eleição de Washington Luis, em 1926, a Coluna se dispersou e seus membros se engajaram em outros tipos de luta contra o governo oligárquico. Alguns tenentes como Luis Carlos Prestes e Miguel Costa, acabaram por adotar ideias mais a esquerda, enquanto outros como Juarez Távora, se alinharam com a direita. Além disto, os jovens oficiais que participaram do tenentismo atuariam de forma decisiva em alguns dos principais acontecimentos políticos até o golpe de 1964.
Nas primeiras décadas do século XX, o operário brasileiro viva de forma muito precária, semelhante aos primeiros anos da Revolução Industrial inglesa: sem perspectiva de viver muitos anos nas fábricas, sem jornada de trabalho definida, sem direito a férias, previdência ou qualquer garantia de estabilidade no emprego. Um trabalhador passava 30 anos trabalhando em uma fábrica, se ficasse doente ou impossibilitado de exercer suas atividades era simplesmente demitido; e a quem recorrer? O Estado não lhe dava assistência. Talvez virasse um mendigo ou um meliante. O Estado era controlado pelas oligarquias como se fosse uma de suas fazendas ou fábricas. A situação dos trabalhadores assalariados, era tratada como caso de polícia (será diferente nos dias de hoje?).
Mas os trabalhadores também mostravam sua insatisfação. Eles organizaram greves, como as de 1917 e 1919, e criaram em 1922 o primeiro partido nacional do Brasil: o Partido Comunista do Brasil (PCB).
Do lado oposto dos trabalhadores, estavam os capitalistas brasileiros. Muitos surgiram com a expansão do comércio em algumas cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte. Entretanto, esses capitalistas estavam intimamente ligados às oligarquias. Sua expansão industrial estava de certa forma condicionada aos lucros do comércio internacional do café e das demais matérias primas. Alguns empresários não suportavam essa situação e também entravam na briga, quando podiam, contra a elite oligárquica. O exemplo mais ilustrativo dessa situação é a formação do Partido Democrático em São Paulo, no ano de 1926. Este partido teve sua origem numa dissidência do Partido Republicano Paulista.
Com este quadro social se apresentaram duas candidaturas para as eleições de 1930: a de Júlio Prestes, representante da velha oligarquia do Partido Republicano Paulista, e a de Getúlio Vargas, representando a Aliança Liberal – união dos Partidos Republicanos do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba; mais o Partido Democrático de São Paulo. O governador mineiro, Antônio Carlos se juntou à Aliança pois o presidente Washigton Luis rompeu a política do café com leite quando indicou para sua sucessão o paulista Júlio Prestes – na tentativa de manter a política de valorização do café paulista em tempos de crise.
As candidaturas foram lançadas. “A polícia do Rio de Janeiro não permitiu que a Aliança Liberal alugasse um cinema, então Getúlio lançou sua candidatura num comício em praça pública, apresentando coisa inédita, um programa de governo”[5]
O programa da Aliança Liberal foi, sem dúvida, o mais avançado da época. Inspirados no reformismo de alguns governos da América Latina, tal como no Uruguai de José Batlle e na Argentina de Hipólito Yrigoyen (e nos avanços da Revolução Mexicana), os aliancistas sabiam que a política deveria avançar socialmente, no sentido de trazer melhores condições de vida para o nascente e cada vez maior operariado urbano. Salário mínimo, férias, 8 horas de trabalho por dia, previdência social, reforma agrária e sindicalização já constam no programa da Aliança Liberal.
A campanha foi acirrada. Após as eleições, onde houve fraude de ambos os lados (como era de costume na época), a vitória ficou com o paulista Júlio Prestes. Setores mais radicais da Aliança Liberal, como Osvaldo Aranha e Flores da Cunha, ambos do RS, passaram a articular com os tenentes para derrubar o governo – alegando, ironicamente, fraude nos resultados eleitorais. O plano para uma revolução política só foi concretizado quando o governador (na época chamado presidente de estado) da Paraíba, João Pessoa, foi assassinado. Embora os motivos não tenham a ver diretamente com a política nacional, a morte do governador paraibano acabou servindo como estopim para que os revolucionários colocassem em prática seus planos.
“No dia 3.10.1930, a Guarda-Civil, a Brigada Militar e populares tomaram de assalto o quartel general, o arsenal, o quartel da Praça do Portão e a guarnição do Morro do Menino Deus”[6] em Porto Alegre. Tem início a primeira e única revolução verdadeiramente popular na história do Brasil. De Porto Alegre os revolucionários seguem de trem até São Paulo e daí para o Rio de Janeiro. Antes mesmo de chegarem, uma junta de militares depôs Washington Luis para, em seguida, entregar o poder a Getúlio Vargas.
Com a vitória da Revolução de 1930, o país entra em uma nova fase econômica, social e política. O Estado brasileiro é praticamente criado nos anos de governo Vargas (1930-1945). O federalismo conservador é esvaziado, criando a brecha para que novas políticas nacionais entrassem em vigor. A industrialização ganha um novo fôlego para a economia do país. Ao mesmo tempo em que o governo vai garantir as revindicações dos trabalhadores e que já estavam previstas no programa da Aliança Liberal. Começa a gestação do trabalhismo brasileiro. A oligarquia paulista, isolada do poder, passa a se articular e conspirar, ganhando força, com ajuda dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra; conseguindo dar um golpe que tira Vargas da presidência em 1945. O legado da Revolução de 1930 se radicaliza nos anos 1950 e 1960 – culminando com o golpe de 1964 contra o trabalhismo.
Notas:
[1] Fotos disponíveis em: http://wp.clicrbs.com.br/almanaquegaucho/2013/03/14/olavo-dutra-e-a-revolucao/?topo=13,1,1,,,13
[2] FAUSTO, Bóris. A Revolução de 1930. In: MOTA, Carlos Guilherme. Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988, p.245.
[3] Para saber mais, leia o texto americanista de Melo e Freitas: Lei Áurea: uma contra revolução brasileira, disponível em: http://geaciprianobarata.blogspot.com.br/2014/06/lei-aurea-uma-contra-revolucao.html
[4] FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. A Crise dos anos 20 e a Revolução de Trinta. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006, p. 7.
[5] FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1988, p. 118.
[6] FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1988, p. 118.
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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