Esse verbete contempla um importante elemento do povoamento europeu do Brasil quinhentista: os degredados da metrópole lusitana. Em razão dos abusos administrativos e do rigorismo religioso, eles vieram das prisões para viver no Brasil Colonial, terra já conhecida pelos europeus antes de 1500. Para tanto, os objetivos dessa produção textual são: contextualizar as grandes navegações, inserindo a prática do degredo no Brasil Colonial no período histórico de formação dos estados nacionais modernos e formação do modo de produção capitalista na Europa; explicar de quais formas o degredado português estava contemplado na dinâmica do antigo sistema colonial, indicando como funcionava o sistema de degredo e quais as funções exercidas pelos deportados para a colonização; além de demonstrar o mérito da investigação sobre o degredo para o estudo do antigo sistema colonial, e com isso melhorar a nossa compreensão sobre o Brasil Colonial.
O degredo no Brasil quinhentista serve para expor a complexidade da peculiaridade brasileira: a América Portuguesa era usada como um grande purgatório e utilizada pela metrópole para realizar os seus objetivos colonizatórios. Também destaca-se que a maioria dos degredados foram mal vistos pela sociedade colonial, como os nativos e os “vadios” do ciclo econômico do ouro.
O fenômeno foi estudado na historiografia por autores como Paulo Prado, Laura de Mello e Souza e Gilberto Freyre, mas ganhando maior destaque em obras de Geraldo Pieroni (chamadas “Excluídos do reino” e “Vadios e ciganos, heréticos e bruxas- os degredados no Brasil – Colônia”). Por meio dessas pesquisas, podemos entender um pouco sobre o degredo na História do Brasil.
O SISTEMA DE DEGREDO PORTUGUÊS CONTEXTUALIZADO NA FORMAÇÃO DO CAPITALISMO EUROPEU
A ocupação das terras americanas por europeus foi parte integrante do processo de expansão comercial, ocasionando uma acumulação primitiva de capitais que foi fator a favorecer a formação do modo de produção capitalista, ao mesmo tempo que surgiam os estados nacionais.
Portugal, na época moderna, era um Estado mercantilista, pois praticava, com rigor, o intervencionismo estatal na economia, e uma das medidas foi limitar a saída de metais preciosos de seu território. Além disso procurava manter uma balança comercial favorável, vendendo mais do que comprava e também, privilegiava a exportação de produtos manufaturados. Embora Portugal tivesse todas as características clássicas de Estado mercantilista, era na política absolutista. Perry Anderson em “Linhagens do Estado absolutista” defende que o absolutismo era um aparelho de dominação feudal recolocado e reforçado para as massas continuarem oprimidas pela nobreza. No Brasil Colonial verifica-se realmente que são criados diversos mecanismos jurídicos para privilegiar essa mesma classe, através de concessões de latifúndios e isenção de impostos, enquanto os degredados são presos às capitanias a que foram enviados, semelhante aos servos dos feudos clássicos europeus. Para o autor, os Estados absolutistas reforçaram a dominação da classe feudal tradicional através da jurisprudência romana, que foi a ordem jurídica desses Estados. E Portugal fortaleceu, da mesma forma, o poder dos nobres através da ênfase de seus advogados e juízes nos procedimentos legais e tradições do direito romano, como colocou Scwartz: “A tradição do Império Romano encarnado nos juízes, escreventes, tabeliões e na própria lei foi transferida para o Novo Mundo”. (SCWARTZ, 1979, pág. 11).
No entanto, as relações de parentesco e outras conformidades marginalizadas, sem reconhecimento oficial, preponderavam sobre os procedimentos legais tipicamente romanos, resultando em abuso administrativo e incompetência judicial, devido a “múltiplas oportunidades para a prática de excessos e atos licenciosos” (SCWARTZ, 1979, pág. 25). Os povos originários não estavam contemplados na jurisdição colonial, fator esse, que somado à escravidão africana, também serve para excluir o Brasil Colonial da tese de feudalismo, já que a complexidade sócio-cultural era ausente de traços feudais.
Neste momento de expansão colonizadora dos Estados absolutistas, Portugal assumiu um pioneirismo nas Grandes Navegações devido à união de suas necessidades (como busca por uma rota comercial mais rentável do que as dominadas pelos árabes, procura por uma força de trabalho mais numerosa e mais barata, além da extração de mais metais preciosos), com suas condições políticas (centralização de poderes políticos), econômicas (grupo de mercadores atuante e audaz), tecnológicas (resultado principalmente da Escola de Sagres e seus prósperos contatos com os árabes que dominavam setores europeus de comércio) e ideológicos (teses iluministas que estimulavam o pensamento por meio da razão). O continente africano, Portugal e Brasil Colonial constituíram o “comércio triangular”, onde Portugal compra pessoas escravizadas da África com aguardente e tabaco produzidos no Brasil Colonial, de onde os portugueses retiravam o açúcar, que era vendido na Europa, até que os holandeses, ao serem expulsos, posteriormente do Brasil, passaram a produzir o seu próprio açúcar, de melhor qualidade e mais barato que o do Brasil Colonial. Com o fim da Nova Holanda no Brasil Colonial, o ciclo brasileiro do açúcar entrou em decadência.
O degredo para o Brasil Colonial no século XVI começou, tendo em vista o povoamento europeu e punição. Como a primeira fase de colonização foi através de arrendamento de grandes extensões de terras litorâneas para cristãos novos, o degredo foi mais usado pela justiça secular. Com a diversificação da economia e da população da colônia, foram instalados tribunais inquisitoriais por três vezes no Brasil Colonial e o degredo utilizado em sua maioria por justificativas religiosas.
DINÂMICA E SIGNIFICADOS DO DEGREDO PORTUGUÊS NO BRASIL COLONIAL
Nas iniciais embarcações para o Brasil Colonial, os degredados eram os primeiros a fazerem contatos com os autóctones. A utilização de degredados no sistema colonial era costume consolidado no processo penal português e nas caravelas enviadas para a América, muitas vezes a maior parte da tripulação era formada pelos degredados. Os mais ricos podiam estar entre os degredados, mas ao chegar se igualavam aos desclassificados sociais, pois perdiam todos os seus bens para a Coroa, enquanto muitos outros eram perdoados de suas penas para prestar serviços reais. Muitas mulheres nobres ou prostitutas eram degredadas ao Brasil Colonial para diminuir a mestiçagem entre os brancos e as indígenas, dessa forma procurando igualar etnicamente as populações do Brasil Colonial e de Portugal. As prisões portuguesas funcionavam como depósitos de degredados que poderiam ser usados em momentos de crise da Coroa. De diversas maneiras os degredados eram utilizados para contribuir com a colonização do Brasil.
Os condenados ao degredo eram aprisionados em Portugal e depois distribuídos para os seus locais de destino, geralmente Brasil ou África. As penas possíveis para os tribunais da igreja ou do Estado, eram espirituais, como doutrinação na fé cristã, missas, ou físicas, como açoite, mutilação, torturas, morte física ou social, o caso do degredo. Os degredados, geralmente eram aprisionados pelos seguintes delitos: assassinatos, roubos, feitiçaria, sodomia, vadiagem, corte de árvores frutíferas, arrombamentos de portas, falsificação de moedas, adultério, heresias, judaísmo, fugas das cadeias. Alguns assimilavam os costumes dos indígenas e outros os escravizavam. Eram os excluídos sociais de Portugal, muitas vezes pessoas pobres, que abalavam a harmonia social e religiosa do reino. Aliados políticos de opositores ao rei de Portugal também eram degredados; e podiam também ser degredados nobres e peões que protestavam contra as decisões do rei.
No sistema colonial, os degredados exerciam diversas funções, como o reconhecimento das terras do Brasil nas primeiras embarcações, contrabando do pau-brasil com os franceses, escravização de indígenas e africanos, execução de funções na Justiça, serviços reais em troca de liberdade de suas penas e também podiam lutar como soldados diante de invasões estrangeiras, com as dos holandeses. Foram também senhores de engenho e donos de capitanias hereditárias. Geraldo Pieroni comenta, em resumo, que destas formas eram utilizados os deportados no Brasil Colonial: “No Brasil, os degredados viviam em liberdade [...] ganhando a vida como soldados, marinheiros, agricultores, pedreiros, carpinteiros, padres, trabalhadores em obras públicas, desbravadores de áreas do interior, intérpretes, espiões, capitães do mato, pequenos funcionários da Coroa (a mesma coroa que os punira em Portugal).” (PIERONI, 20020, pág. 12).
No primeiro século de colonização, apenas eram degredados para o Brasil portugueses, e, após, o degredo expandiu-se também aos trabalhadores escravizados para outras partes do Brasil ou para Portugal. Gerando diversos mestiços, assimilavam os costumes locais para os nativos simpatizarem com o colonialismo português, o degredo foi uma fórmula encontrada para povoar com europeus o Brasil Colonial, para obterem definitiva posse do espaço outrora dos povos originários, ao mesmo tempo que esvaziavam as prisões da metrópole. O degredo possibilitou a diminuição do contingente populacional lusitano, da sua parcela considerada inútil ou perigosa, enquanto ofereceu oportunidade de purificar as almas dos culpados perante a crença religiosa monoteísta. Foi um povoamento satisfazendo o desejo das classes dominantes portuguesas de harmonização social da península, livrando-se de “maus elementos” que abalavam a harmonia social e religiosa do reino.
A purgação às faltas cometidas em Portugal era feita através do degredo para o Brasil Colonial, ele estava ligado, portanto, à penitência, purgação e expiação. Para Eduardo Hoornaert em “A igreja no Brasil - Colônia 1550- 1600)”, a igreja tinha estreita aliança com o Estado português expansionista. O degredo, era a síntese entre política e religião. O sistema de degredo era um instrumento de cristianização. O Brasil tornou-se o lugar, por excelência, para o destino dos degredados de Portugal, tornando-se um purgatório colonial.
Laura de Mello e Souza, em sua clássica obra “O diabo e a terra de Santa Cruz. feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial”, ressalta que aos nativos a humanidade era inviável. Neste sentido, os degredados portugueses são demoníacos, tanto quanto os gentios do Brasil Colonial, pois a imensa maioria continuava como peão ou tinha seus bens e riquezas confiscados. O Brasil teria sido povoado, para a fina flor colonial, por gente de mau viver, sem bens materiais, pessoas decadentes, resíduos da sociedade vomitadas como ralé anônima, ainda que vinda de Portugal.
REFLEXÕES FINAIS
O sistema de degredo esteve inserido no período histórico das “Grandes Navegações” e apesar de Portugal possuir um poder político extremamente centralizado, a sua jurisprudência era instável, com leis que mudavam muito rapidamente. As necessidades e as condições favoráveis proporcionaram a Portugal a colonização do Brasil.
Desde as primeiras caravelas, os degredados desempenharam um papel fundamental para o êxito da colonização portuguesa do Brasil. Desta forma, Portugal se organizou internamente ao livrar-se de sua população que lotava as suas prisões. O sistema de degredo era um mecanismo do antigo sistema colonial, resultando em diversos preconceitos sobre os primeiros povoadores europeus do Brasil, que tornou-se o lugar, por excelência, para o destino dos degredados de Portugal, tornando-se um purgatório colonial.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. 2° ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
HOORNAERT, Eduardo. A igreja no Brasil-colônia (1550-1800). São Paulo: Brasiliense, 1982)
PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-colônia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
PIERONI, Geraldo. Os excluídos do reino: a inquisição e o degredo para o Brasil Colônia. 2° ed. Brasília/DF: UnB, 2007.
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes. 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. 1500-1800. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
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