MUITO ANTES DA IMIGRAÇÃO: o protagonismo das lutas trabalhistas dos escravos brasileiros que os livros não contam. - parte 02

Anteriormente vimos sobre dois grandes levantes grevistas promovidos por escravos no atual estado da Bahia, sendo o último destes a comentarmos foi uma mobilização em 1857 que parou realmente toda a capital Salvador. Sobre esses movimentos então vale destacar um sentimento coletivo de autoestima muito presente. Principalmente entre assim chamados como nagôs que eram os escravos africanos que seguiam a fé muçulmana.

 

Para estes nagôs, era inadmissível a um fiel muçulmano ser escravizado, motivo pelo qual formavam um dos grupos mais rebeldes ao sistema escravagista na época. E por sua vez eles eram mais numerosos na Bahia, motivo pelo qual era fácil entender que eles dominavam o mercado de ganho de Salvador, concentrado no transporte.

 

Escravidão no Brasil: formas de resistência - Brasil Escola

Os trabalhadores negros escravizados resistiam de diversas formas

 

Logo, fosse individualmente ou em grupo, eram eles os motores da economia local. Algo já percebido também por muitos donos de escravos que, por esta razão, adotavam a seguinte estratégia: em relação ao ganho do escravo no dia trabalhado, uma parte somente ia para o senhor, já que a outra era do próprio trabalhador, apesar da sua condição de escravo. O que permitia até a muitos, com o tempo, comprarem a própria alforria. A qual não era a única forma de negociação entre escravos e donos, mas que por  ora basta para entendermos que os trabalhadores escravos em nada diferiam dos não-escravos quanto à criação de pautas para negociações referentes a melhores condições de trabalho.

 

Tal qual a sua organização para tanto. Podendo se dizer que os nagôs comumente organizavam-se em cantos, que é a representação mais acabada da solidariedade e do espírito comunitário do trabalhador africano que era dirigido por um capitão, escolhido pelos membros. Essa organização, evidentemente, ao se observar com um mínimo de atenção, em nada difere de uma associação ou sindicato hoje, em relação, a sua organização em busca por melhores condições de serviço aos seus iguais.

 

De modo que voltando ao incidente de 1857, tudo começa quando a Câmara de Vereadores de Salvador quis obrigar africanos escravizados e libertos a se registrarem para assim serem obrigados a pagarem um imposto profissional. Assim como exigia que se submetessem a uma série de medidas de controle policial (como, por exemplo, uma placa no pescoço). Por isso que estourou a greve que durou dez dias, tempo que se fez uma eternidade a toda a economia local. E qual o resultado final disso tudo? Foi que eles conseguiram barrar o imposto, assim como tiveram ampliadas as possibilidades de fiança para poderem trabalhar. É isso aí!

 

Todavia, não nos enganemos ao pensar que o protagonismo escravo se limitou à Bahia. Por isso vale destacar que neste mesmo ano de 1857, os trabalhadores escravizados pertencentes ao Visconde de Mauá (Irineu Evangelista de Sousa) também pararam o serviço da fábrica da Ponta d’Areia (uma das primeiras indústrias de construção naval do Brasil). Este estaleiro era então um dos maiores estabelecimentos da cidade, com cerca de 10 oficinas e 600 operários, sendo que destes 150 eram escravos. 

 

 Barão de Mauá

 A locomotiva Baronesa simboliza a importância histórica do Visconde de Mauá, que recebeu o título de barão do imperador Dom Pedro II.


Mas ao contrário do levante em Salvador, apesar de noticiada na imprensa, a greve em Ponta d’Areia não tem maiores informações sobre as reivindicações ou os desdobramentos da mesma. O que não tira a importância deste evento ser aqui destacado.

 

Podendo ainda ser observado o seguinte: dos operários registrados nas manufaturas do Rio de Janeiro na época desta greve, 45% deles eram escravos. Ou seja, uma força de trabalho considerável a ponto de paralisar igualmente a economia carioca, semelhante ao que se viu em Salvador. 

 

Portanto, não é surpresa que desde os primórdios da monarquia no Brasil, mobilizações trabalhistas promovidas pelos escravos acontecessem. Podendo assim citar a um ocorrido no final da década de 1820, quando cativos, africanos livres e outros trabalhadores pararam a Fábrica de Pólvora Ipanema. Sua pauta era a concessão de melhores condições de trabalho em relação às diárias trabalhadas e alimentação.

 

E aos que ainda não achem suficientes aos exemplos já dados, podemos destacar também um episódio ocorrido no ano de 1854, em que o proprietário Joaquim da Rocha Paiva sofreu uma verdadeira ação coletiva dos seus escravos. O fato se fez numa terça-feira, do dia 5 de setembro.

 

O registro exato de quando a mobilização aconteceu mostram bem a repercussão da mesma na época, quando a Fábrica de Velas e Sabão, na Gamboa foi paralisada por um grupo de escravos “armados de achas de lenhas e facas”. Os mesmos exigiam serem vendidos a outro senhor, o que, por sua vez, levou o proprietário a tentar negociar, propondo discutir o assunto no dia seguinte, com a justificativa de que as altas horas tornavam difícil uma pauta aceitável a ambos os lados.

 

Contudo, os grevistas não aceitaram adiar a solução, levando a um impasse que só terminou com uma rápida repressão policial de quase cem homens. Contingente este que assustou os moradores da Corte, e chamou a atenção da imprensa que testemunhou a pronta e cordial rendição dos escravos. Talvez porque eles tinham certeza de que sendo presos, ficariam todos juntos, livres do atual dono por algum tempo e assim, diante da crise gerada, o melhor caminho para a mesma seria, cedo ou tarde, a venda dos escravos, justamente o que eles exigiam desde o começo.

 

Novamente se destacando que são todos esses casos relatados nestas duas sequências de “Muito antes da Imigração” apenas parte de um mosaico muito mais amplo de estratégias e mobilizações protagonizadas pelos escravos. Acontecendo que, a historiografia atual muito já conseguiu resgatar sobre estes episódios que, até hoje, para a maioria, são desconhecidos, de forma que, caso haja interesse por parte dos leitores, podemos ainda mais se aprofundar sobre os mesmos.

 

Pois nosso objetivo inicial se fez justamente para chamar a atenção sobre a invisibilidade de todo o protagonismo dos escravos brasileiros nas lutas trabalhistas que assim nos mostram como é um mito cruel a falsa ideia de passividade da população local que precisou da contribuição do imigrante europeu para se perceber de seu valor. Portanto, aos que queiram saber mais, temos um universo inteiro a explorar a este assunto. E assim ficamos a aguardar e caso assim se peça, mais iremos falar sobre todo este protagonismo muito antes da imigração.

 

Sobre o autor:  

LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná), é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

 

 


Um comentário:

  1. Muito bom. Pena que os livros de escola não explicam sobre isso. Parabéns gente do Cipriano Barata. Muito da hora.

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