De acordo com a mitologia grega, Procusto era um bandido que vivia na serra da região de Elêusis. Ele tinha uma cama de ferro com seu tamanho exato. Os viajantes que buscavam abrigo na casa de Procusto, e deitavam em sua cama, acabavam morrendo. Procusto cortava as pernas e a cabeça dos visitantes, caso eles fossem maiores que o tamanho da cama. Se fossem menores, ele esticava-os, amarrando-os pelas pernas, mãos e pescoço até alcançarem o exato tamanho da cama.
O mito de Procusto se assemelha bastante com as falácias dos liberais Alan Greespan e Adrian Wooldrige em seu livro “Capitalismo na América: uma história” (editora Record, 2020). Os autores parecem “cortar” a história, “decepar” as verdades, “esticar fatos” para caber em sua narrativa liberal. É a tentativa descarada de tentar colocar uma teoria a qualquer custo em uma realidade que claramente desmente essa teoria.
Os autores tentam justificar a excepcionalidade e o sucesso do capitalismo nos Estados Unidos com a tese da “destruição criativa”. “A destruição criativa é a principal força por trás do progresso econômico, o ‘vento perene’ que leva negócios – e vidas – consigo, mas que, nesse processo, cria uma economia mais produtiva (p. 21)”.
Abrangendo um período que vai da formação dos Estados Unidos, no final do século XVIII, até a década de 2010. Ao longo de toda essa história nacional, o que chama a atenção é como os autores mostram “os governos malvados, com seus impostos e programas sociais”. Mas claro, nesse ínterim, caem em muitas contradições.
Por exemplo, o grande evento histórico da Crise de 1929, que afetou mais os EUA do que qualquer outro país da América – dado seu grau de desenvolvimento e sua importância, já naquela época, no sistema capitalismo mundial.
Para Greenspan e Wooldridge a culpa da crise foi de Franklin Roosevelt! Eles ignoram a completa falta de ação do governo dos EUA na década de 1920, em regulamentar bancos e ações. Ambos autores creem que o mercado se autorregula, que o capital se estabiliza por si só e todas essas bobagens que a história prova serem mentiras. Vejamos o que eles dizem sobre as políticas do New Deal: “Mesmo que tenham ajudado a América [EUA] no curto prazo, no longo prazo foram prejudiciais, mergulhando o país em uma segunda depressão e garantindo que a Grande Depressão durasse mais nos Estados Unidos do que na maioria dos outros países (p. 258)”.
Como se vê, a história é, para Greenspan e Wooldridge, uma massinha de modelar, que eles modelam de acordo com seus interesses neoliberais. Para ambos autores, o mal da América é ter pleno emprego e sindicatos fortes, capazes de não aceitar abusos por parte dos patrões. Contra essa situação, surge o “herói neoliberal”. O cowboy do cinema: Ronald Reagan.
Alan Greespan (1926) foi diretor do Federal Reserve dos Estados Unidos, indicado em 1987 durante o governo de Ronald Reagan. Como um bom puxa-saco, Greenspan rende as maiores bajulações a Reagan e seu governo. “Reagan merece o crédito por três conquistas econômicas inegáveis: Primeiro, ele quebrou o poder dos sindicatos. […] Reagan também deu continuidade à política de desregulamentação da economia de Jimmy Carter, enquanto também combatia a inflação. […]. A terceira conquista de Reagan foi introduzir a maior mudança no regime tributário da América desde a Primeira Guerra Mundial. A reforma tributária […] reduziu a alíquota máxima do imposto de renda de 70% para 50%, e a do imposto sobre ganhos de capital, de 28% para 20% (p. 332, 333 e 334)”.
Curioso que em meio a tantas conquistas do governo Reagan, os gastos do governo seguiram altos, mesmo com cortes nas políticas sociais. “Reagan foi responsável por uma dívida nacional maior do que a de todos os governos que o antecederam juntos (p. 335)”.
A pergunta que se faz imprescindível: sem tantos programas sociais, para onde ia o dinheiro do governo? A resposta: para grandes empresas ligadas ao setor de defesa, militares: “os gastos reais per capita com benefícios sociais aumentaram à taxa mais baixa desde o início da década de 1950, a 1,4% ao ano de 1981 a 1989. Ainda assim, a dívida nacional cresceu, garantindo que o programa de redução de impostos e de aumento dos gastos com a defesa de Reagan tivesse que ser pago por meio de empréstimos (p. 335)”.
Ou seja, até para o estado mínimo dos neoliberais, é preciso de um governo forte e que tenha muito dinheiro para bancar. É como um jovem liberalzinho mimado e rico que pode viajar confortavelmente para os destinos mais luxuosos, protestar contra as políticas do estado, sabendo que tem a segurança de uma família rica por trás para bancar seus caprichos.
Ainda sobre a época de Reagan, os autores discorrem sobre a perda da capacidade industrial dos EUA. Até a década de 1970, o país tinha grandes indústrias pesadas. Automóveis, aço, petroquímicas, máquinas e implementos agrícolas eram o segredo do sucesso. Porém, com as desregulamentações, as concorrências de Alemanha e Japão (recuperados dos impactos da guerra) e, de acordo com os autores, os sindicatos fortes, fez essas indústrias ruírem. O cinturão do aço virou o cinturão da ferrugem.
O curioso é que o fator determinante para a ruína da indústria pesada dos EUA foi a grande oferta de trabalhadores imigrantes, que uma vez não sindicalizados, aceitavam trabalhos precários, sem acordos já estabelecidos e com remunerações mais baixas. Irônico que hoje os republicanos, sob a sombra de Donald Trump, repudiem os imigrantes: sem eles, o projeto neoliberal de destruir os sindicatos não teria acontecido.
“O grande cinturão industrial que antes fora o bastião do poder trabalhista, […], transformou-se no Cinturão da Ferrugem. Um aumento nas imigrações fez pender a balança do poder para o lado dos empregadores. A proporção da força de trabalho fora do setor agrícola representada por sindicatos caiu de 23,4% em 1980 para 16,8% em 1989 […] (p. 333)”.
Como podemos notar, a história é implacável! Teorias são destruídas pela ação e pela força do tempo. Alan Greenspan e Adrian Wooldridge tentam traçar sua história do triunfo (neo)liberal nos Estados Unidos, e demostrar que o país é muito melhor sem regulação, com amplas desigualdades sociais e com um governo refém do sistema econômico rentista. O livro “Capitalismo na América” é uma boa leitura para quem quer se aprofundar melhor na mente dos neoliberais, saber como eles usam argumentos pífios para moldar a história de acordo com seus interesses.
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