Antes de qualquer outra observação sobre o fenômeno do símbolo Zumbi, precisamos agora nos ater a alguns pontos básicos sobre como surge a imagem de um herói que passa a representar toda uma coletividade. Pois de outro jeito corremos risco de fazer uma análise extremamente parcial, meramente pendendo para um lado ou para outro. Ou exaltando ou difamando a este personagem. Justo, o contrário do que queremos fazer aqui que tentar encontrar uma visão mais próxima possível de quem foi realmente Zumbi dos Palmares. Assim como ele de fato se tornou o vulto de tamanho impacto no imaginário popular que hoje conhecemos.
Então primeiramente temos que ver como se forma a figura de um herói em qualquer lugar, qualquer tempo. Para tanto observemos que todo o herói em um imaginário coletivo surge para preencher aos anseios ideológicos deste mesmo coletivo em questão. Podendo este herói representar a um grupo que detém o poder ou mesmo a um grupo, de algum modo, excluído, marginalizado. Tanto um grupo em situação privilegiada como em condições, de alguma forma, desfavoráveis. Sendo que no primeiro caso, comumente este herói é lembrado por suas vitórias, ao contrário dos heróis dos grupos mais oprimidos ele é lembrado justamente por seus fracassos, por suas derrotas, por assim dizer.
Ou seja, diante da falta de sucessos que possam ser atribuídos a este herói, ele passa a ser exaltado pelo que pode ser entendido como o seu sacrifício (martírio) que, por sua vez, o que se entende como sua coragem e/ou idealismo, como um modelo de admiração a todo um grupo. Ou seja, não sendo possível este herói ser admirado por suas conquistas, é preciso encontrar nele outros elementos a despertar a admiração dos que venham a se sentir representados por este ídolo a ser escolhido para lhes representar. Neste caso, também, pode acontecer que a figura deste herói alimente uma ideia romântica de que os que sofrem ao fim serão consolados, os agora derrotados um dia terão a justa vitória.
Sendo um exemplo desta afirmação, o povo hebreu, no Velho Testamento, que sofre a escravidão no Egito, assim como é oprimido por povos variados (como os assírios, egípcios, os babilônicos, etc.), seus profetas sofrem perseguições, dentre outros tormentos que são destacados com o intuito de passarem a mensagem de que os males que os afligem são a provação se eles são, de fato, o povo escolhido por Deus. E, portanto, a vitória, ao fim estará com eles. A despeito de que isso acontecerá em um futuro que não tem previsão de quando poderá vir a acontecer. Ademais cabendo basicamente entendermos que qualquer símbolo/herói de uma coletividade se faz o elemento que permite um sentimento de identidade, pertencimento, empoderamento a um coletivo que se sente representado por ele.
Ou seja, um herói derrotado precisa tanto criar um sentimento de agregamento ao grupo que se espera que ele represente, como também precisa criar uma expectativa de triunfo, compensação futura quando essa coletividade se entende como desamparada, sofredora. Passando a ver este seu símbolo quando exaltado, adorado, como um reflexo de uma expectativa igual de em um futuro a grandeza, o triunfo, igualmente vir a seus adoradores.
Entendido isso, torna-se fácil constatar porque a coletividade negra em nosso país, como qualquer outra coletividade, igualmente precisava ter um herói que a representasse como um todo, congregando todas as demais diferenças possíveis, de forma que todos, por meio deste símbolo, se entenderiam como negros e herdeiros das lutas contra um sistema de exploração atroz - que foi a vergonhosa existência do sistema escravagista no Brasil.
Tanto que por ocasião da abolição total da escravidão em nosso país, este símbolo para o orgulho negro não se fez Zumbi, mas sim a Princesa Isabel de Bragança, filha de Dom Pedro II e responsável pela assinatura da lei Aurea, em 13 de maio de 1888. O que pode parecer estranho, a escolha de uma personagem branca, ligada a elite da época como representante da identidade de um coletivo marginalizado, oprimido. Contudo, como toda tradição, de alguma forma inventada, pois condicionada a dados interesses, o fim da escravidão se nutriu de uma intencionalidade voltada a “amenizar” a memória dos conflitos entre brancos e negros, se fazendo a princesa Isabel, assim, o símbolo ideal para atender a esse objetivo.
De forma que por muito tempo a data de 13 de maio passou a ser celebrada como um elemento de identidade negra, presente inclusive em várias entidades negras, em todo o país, que por isso eram denominadas como 13 de Maio. O que aconteceu não pela falta de personalidades negras na época que combateram a escravidão neste mesmo período em que a Lei Aurea foi assinada. Tanto que houve sim grandes protagonistas neste sentido como, por exemplo, Luiz Gama e André Rebouças. Contudo, a mentalidade racista e eugenista presente no final do século XIX até a metade do século XX, queria justamente apagar essa passagem da história (o ressentimento pelos séculos de escravidão) e por consequências, aos descendentes dos envolvidos nela. Mas enfim, importando dizer que dali em diante a identidade negra, independente de ter ou não participado desta escolha, tinha agora um símbolo a lhe representar.
Dado que a mentalidade racista e eugenista presente no final do século XIX até a metade do século XX, queria justamente apagar essa passagem da história (a escravidão) e por consequências, aos descendentes dos envolvidos nela. Ou seja, um interesse em apagar ao máximo a memória de todo o protagonismo dos negros em sua luta.
O que só mudaria com o surgimento de uma nova intelectualidade com um pensamento diferente da visão elitista em voga no final do século XIX e o estouro de um anseio reprimido por décadas de maior valorização que chega ao seu ápice por ocasião do declínio do brutal regime militar em nosso país que durou de 1964 a 1985. Quando agora não só se viam os militantes negros buscando por maior valorização social que cria a necessidade de um herói negro, como também que representasse a ideia de resistência à atual estrutura de caráter sócio politica de nosso país, onde historicamente uma maioria demograficamente era feita uma minoria em termos de direitos sociais.
É a partir deste contexto se forma, a partir de 1978, o mito identitário de Zumbi dos Palmares começa a se formar. Momento em que a data de 20 de novembro, também começa a ocupar espaço nesta novo entendimento que então está se formando. Devendo se compreender mito identitário no sentido de se buscar num vulto histórico, como representação de um ideal e não necessariamente observar ao homem real por trás dela. O que não quer dizer que a escolha de sua pessoa se fez meramente aleatória ou mesmo totalmente forjada. De modo algum.
Pois, primeiramente é um fato incontestável que a manutenção de sua memória ao longo de séculos, apesar dos esforços das autoridades coloniais escravagistas em fazê-la cair no esquecimento, mostra que ele não se fez um herói de todo “fabricado”. Assim o dizendo, pois outros como, por exemplo, Joaquim José da Silva Xavier (o Tiradentes) igualmente se fez um personagem condenado ao esquecimento pelos seus algozes que, do mesmo modo, se tornou um símbolo semelhante a Zumbi. Tanto na exaltação, como nas críticas atualmente em voga sobre o seu legado.
E que, tanto um como outro, alcançou a sua posição no imaginário geral, para atender a uma necessidade ideológica. Vindo de cima para baixo, seja Tiradentes por obra do governo republicano no final do século XIX, seja Zumbi pelos intelectuais que precisavam de um símbolo que representasse justamente a luta e não a espera por concessões. Por mais que o processo concluído com o dia de 13 de Maio de 1888, em nada se fez uma concessão e personalidades negras, como os já citados Gama e Rebouças tem sim grande mérito nesta luta.
Tanto que para finalizarmos nossa jornada em busca do homem por trás do mito identitário, o Zumbi dos Palmares como homem e como símbolo; precisamos agora refletir sobre os aspectos positivos e negativos dele figurar como o principal representante de um ideal de classe. Pois é importante se discutir às motivações e desdobramentos de duas correntes opostas: defensores irrestritos de Zumbi e críticos revisionistas sobre o seu papel real na história. Por isso no próximo artigo abordaremos sobre isso, finalizando nossa longa, mas necessária jornada sobre a sua trajetória que transcende que a sua mera existência.
Haja vista quantos aspectos nós encontramos a refletir sobre o ambiente antes de seu nascimento que o pode ter assim moldado, tanto quanto aos impactos de sua memória atualmente.
Sobre o autor:
LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná) é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, especialista em ensino religioso e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como as obras locais “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais” (em parceria com Isolde Maria Waldmann) e “Memórias e reflexões sobre um povo: Colônia Sutil”
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