No ano de 2016 devemos lembrar os 50 anos de uma das organizações políticas mais importantes dos Estados Unidos: o Black Panther Party – Partido Panteras Negras.
A criação deste partido é um reflexo das contradições sociais nas quais os negros estadunidenses estavam inseridos na sociedade desde o final do século XIX e início do XX. No sul rural, os negros, após a guerra civil, se tornaram vítimas da segregação. Muitos insatisfeitos passaram a se organizar. Na segunda metade do século XX grupos religiosos agregaram estes descontentes que encontraram uma grande liderança no pastor protestante Martin Luther King; utilizando-se da “desobediência civil” como protesto contra o racismo. Por outro lado, nas grandes cidades, tais como Nova York, Chicago e Los Angeles, a população negra estava praticamente confinada nos chamados “guetos negros”: bairros onde a maioria era negra. O acesso a universidade, saúde e moradia eram restritos demais para a população negra. Diferente do “sul rural”, nas grandes cidades os negros passaram a se organizar em partidos políticos. Um destes partidos foi o Black Panthers Party (Partido dos Panteras Negras).
Membros do Partido dos Panteras Negras. |
Fundado em 1966 na Califórnia pelos estudantes Huey Newton e Bobby Seale, ambos inspirados pelo ativista Malcolm X, que defendia a ideia de autodefesa do povo negro, e no socialismo marxista, o Partido Panteras Negras em poucos anos ganhou muitos adeptos. Além do que, os panteras negras inspiraram muitos artistas e intelectuais estadunidenses como a filosofa Angela Davis. Mas não demorou muito para que a polícia iniciasse uma caça a seus militantes – num contexto de Guerra Fria e de “caça aos comunistas” internamente nos EUA.
Huey Newton (1942-1989) era um estudante de filosofia na Universidade da Califórnia quando entrou em contato com as ideias de Marx, Lenin, Mao Tsé-Tung, Frantz Fanon, Che Guevara e Malcolm X. A partir destas leituras se engajou no movimento negro. Sua principal crítica era a violência policial contra os negros estadunidenses. Foi na faculdade que Newton encontrou Robert “Bobby” Seale (1936) que militava num movimento negro de inspiração separatista. Ambos concordavam que a violência policial precisava ser detida e combatida, e acreditavam que só uma organização de autodefesa poderia poderia se opor a isto. Assim foi criado o Partido Panteras Negras para Autodefesa. Em 1967 foi lançado o programa do partido, chamado de “Programa dos Dez Pontos”:
O QUE QUEREMOS AGORA! EM QUE ACREDITAMOS
Para aquelas pobres almas que não conhecem a história dos negros, as crenças e os desejos do Partido Pantera Negra para Autodefesa podem parecer absurdos. Para o povo negro, os dez pontos são absolutamente essenciais para a sua sobrevivência. Temos ouvido a frase revoltante “essas coisas levam tempo” por 400 anos. O Partido Pantera Negra sabe o que o povo negro quer e precisa. A unidade negra e a autodefesa tornarão essas demandas uma realidade.
O QUE QUEREMOS
1. Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossa comunidade negra.
2. Queremos desemprego zero para nosso povo.
3. Queremos o fim da ladroagem dos capitalistas brancos contra a comunidade negra.
4. Queremos casas decentes para abrigar seres humanos.
5. Queremos educação para nosso povo! Uma educação que exponha a verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.
6. Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.
7. Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas negras.
8. Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.
9. Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras, tal como definido pela Constituição dos Estados Unidos.
10. Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.
EM QUE ACREDITAMOS
1. Acreditamos que nós, o povo negro, não seremos livres enquanto não formos capazes de determinar nosso destino.
2. Acreditamos que o governo federal é responsável e obrigado a dar a todos os homens e mulheres emprego e garantir alguma forma de salário. Acreditamos que se os homens de negócio, brancos e americanos, não quiserem dar emprego a todos, então os meios de produção devem ser tomados deles e colocados a disposição da comunidade para que as pessoas possam se organizar e empregar toda a gente, garantindo um nível de vida de qualidade.
3. Acreditamos que esse governo racista nos roubou, e agora exigimos um pagamento de sua dívida de 40 hectares e duas mulas. Esse pagamento foi prometido há 100 anos como restituição por todo o trabalho escravo e os assassinatos em massa do povo negro. Nós iremos aceitar o pagamento em moeda corrente e ele será distribuído por todas as nossas comunidades. Os alemães estão agora ajudando os judeus em Israel pelo genocídio que realizaram contra aquele povo. Os alemães mataram 6 milhões de judeus. Os americanos racistas foram parte do assassinato de mais de 50 milhões de pessoas negras; portanto, sentimos que essa é uma demanda bem modesta que estamos fazendo.
4. Acreditamos que, se os donos de terras brancos não derem moradias decentes para a comunidade negra, então as terras e as casas devem ser conseguidas através de cooperativas de modo que nossa comunidade, com a ajuda do governo, possa construir casas decentes para seu povo.
5. Acreditamos em um sistema educacional que dê ao nosso povo o conhecimento de si próprio. Se uma pessoa não tem conhecimento de si mesma e de sua posição na sociedade e no mundo, essa pessoa terá pouca chance de se relacionar com qualquer outra coisa.
6. Acreditamos que o povo negro não pode ser forçado a lutar no serviço militar para defender um governo racista que não nos protege. Nós não vamos lutar nem matar outras pessoas de cor no mundo que, como o povo negro, estão sendo vitimizadas pelo governo americano branco e racista. Nós vamos nos proteger da força e da violência dessa polícia racista e desse exército racista, usando todos os meios necessários.
7. Acreditamos que podemos acabar com a brutalidade policial em nossa comunidade negra organizando grupos negros de auto-defesa dedicados a defender nossa comunidade negra da opressão e brutalidade da polícia racista. A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos nos dá o direito de portar armas. Portanto, nós acreditamos que todo o povo negro deva se armar para auto-defesa.
8. Acreditamos que todos os negros devam ser libertados das várias prisões e cadeias, porque não tiveram julgamento justo e imparcial.
9. Acreditamos que os tribunais devam seguir a Constituição dos Estados Unidos para que o povo negro receba julgamentos justos. A Décima Quarta Emenda à Constituição dá a toda pessoa o direito de ser julgada por seus pares. Um par é uma pessoa de origem econômica, social, religiosa, geográfica, ambiental, histórica e racial similar. Para dar cumprimento a isso, o tribunal teria que compor um Júri com elementos da comunidade negra, quando o réu fosse negro. Nós temos sido e estamos sendo julgados por júris totalmente compostos por brancos, que não têm nenhuma compreensão do que seja o “pensamento médio” da comunidade negra .
10. Quando, no curso dos acontecimentos humanos, torna-se necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro e assumir, entre os poderes da Terra, uma posição separada e igual àquela que as leis da natureza e de Deus lhe atribuíram, o digno respeito às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que o impelem a essa separação. Acreditamos que essas verdades sejam evidentes, que todos os homens são criados de maneira igual, que eles foram dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca por felicidade. Que, para assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados - que,quando qualquer forma de governo se torna destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando os seus poderes da forma que ao povo pareça mais conveniente para sua segurança e felicidade. A prudência, de fato, recomenda que os governos instituídos há muito tempo não sejam alterados por motivos fúteis e temporários; e, segundo a experiência tem demonstrado, as pessoas preferem sofrer, enquanto os males são suportáveis, a corrigir a injustiça, abolindo as formas às quais estão acostumados. Mas, quando uma longa série de abusos e usurpações, voltadas invariavelmente ao mesmo objetivo, indica o desígnio de submeter as pessoas ao despotismo absoluto, é um direito delas, um dever delas, abolir tal governo e instituir novos guardiães para a sua segurança futura.
“Até 1967, o Partido era mais uma unidade, dentre várias outras, espalhadas pelos EUA, surgidas simultaneamente nessa época, que se autointitulavam Panteras Negras. Todas elas atendiam a um chamamento comum. Usando o animal símbolo do Lowndes County Freedom Organization (LCFO), organização política que o Students Non-Violent Coordinating Committee (SNCC) pretendia transformar em partido no Alabama, os Panteras de Oakland eram mais um grupo que buscava dar forma política ao slogan 'Black Power', de Stokely Carmichael, líder do SNCC. Então, pouco conhecido fora do norte da Califórnia, o grupo de Newton, Seale e do jornalista de Ramparts, Eldridge Cleaver, por volta de outubro de 1968, já havia rapidamente unificado em torno da sua liderança todos os grupos de Panteras, aproximado e emparedado vários setores da esquerda norte-americana, estabelecido uma publicação oficial com tiragem de massa, reunido um orçamento anual milionário, angariado suporte internacional, e dominado o debate pela definição dos sentidos do Poder Negro. Essa ascensão, que se alicerçou na atração dos jovens mobilizados nos confrontos raciais na era dos assassinatos de Malcolm X (1965) e King (1968), foi alcançada com dramáticas e bem-sucedidas ações públicas, e após duras disputas interorganizacionais e partidárias. Em razão de suas opções táticas, Newton, Seale e Eldridge Cleaver consideravam o Partido o único capaz de exercer algum esforço de politização sobre a massa de jovens negros que escolheu a violência. E graças ao perfil da sua liderança, os únicos que poderiam atrair identificação imediata.”[1]
Em 1967 houve um grande protesto na Assembleia da Califórnia contra a chamada “lei Mulford”, pela qual o porte de armas carregadas em público seria proibido. Alguns militantes dos Panteras Negras, liderados por Bob Seale, invadiram a Assembleia, armados, e foram presos pela polícia local.
Em 1968 o líder dos Panteras Negras, Huey Newton, foi preso, acusado de matar um policial que o revistava (o policial teria “se assustado” com a aproximação de um camarada de Newton e começou a disparar contra os dois). Uma campanha pela sua liberdade foi feita e em 1970 ele saiu da prisão para voltar aos estudos e continuar sua militância – mas sempre com o FBI lhe perseguindo.
Entre os casos mais emblemáticos esteve o da militante Angela Davis que foi presa após identificarem uma arma registrada no nome dela em um episódio de tiroteio que vitimou um juiz. O FBI chegou a considera-la uma das mulheres mais procuradas do país. Em 1970 Davis foi presa. O próprio presidente dos EUA, na época o republicano Richard Nixon, chegou a comemorar a prisão de Davis, considerada por ele e por uma parte significativa dos estadunidenses como “uma perigosa terrorista”. Uma grande campanha pela sua libertação (Free Angela Davis) ganhou a simpatia até de artistas como os Rolling Stones e John Lennon. Por fim em 1972 ela foi liberta.
Partido dos Panteras Negras alimentando crianças carentes |
Além destas ações, o Partido Panteras Negras também fazia café da manhã para as crianças de bairros mais carentes e também editavam um jornal (The Black Panther); que vendiam por 25 centavos de dólar.
À medida que o Partido Panteras Negras ganhava mais adeptos, os organismos de espionagem (como o FBI) passavam a perseguir e prender seus membros. “O Diretor do FBI, J. Edgar Hoover, considerava o Partido dos Panteras Negras como 'a maior ameaça à segurança interna do país', e não se deteve ante mais nada para destruí-lo. Sua estratégia era introduzir o máximo de confusão ideológica para aumentar a dissenção dentro das fileiras do partido apostando na provocação policial própria dos Panteras Negras, usou da violência, incriminações, do fomento de conflitos pessoais, facilitando o acesso às drogas e armas.”[2]
O trecho abaixo, extraído de um livro escrito por um Pantera Negra chamado Michael Tabor, nos dá a dimensão desta estratégia de confusão ideológica:
“Recentemente [...] no Harlem um menino negro de 12 anos foi assassinado por uma overdose de heroína. Menos de duas semanas depois, uma jovem negra de 15 anos teve o mesmo destino trágico. Durante o ano de 1969, só em Nova York, havia mais de 900 mortes decorrentes da dependência de drogas. Destes, 210 eram jovens na faixa etária de 12 a 19. Dos mais de 900 mortos, a esmagadora maioria eram negros e porto-riquenho. Estima-se que existem pelo menos 25 mil jovens viciados em drogas em Nova York – e essa é uma estimativa conservadora. É interessante notar que essa crescente preocupação por parte do governo é proporcional à propagação da praga [das drogas] nos santuários das comunidades médias e da classe alta branca. Enquanto a peste estava confinado ao gueto, o governo não vê o ajuste para considerar um problema”.[3]
No final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, a propaganda oficial do governo e a estratégia de confusão ideológica, levada a cabo pelo FBI, conseguiram transformar a imagem dos militantes dos Panteras Negras na de “marginais delinquentes” que deveriam ser evitados. O acesso fácil às drogas foi outro fator que esvaziou a militância e organicidade dos panteras negras. As armas que antes serviam para autodefesa, agora eram utilizadas para manter grupos de traficantes – que acabaram tendo a “função” de desviar a atenção das pessoas para o consumo de drogas e não mais para a militância política. Nesta guerra entre traficantes e militantes (junto com as perseguições do FBI) muitos panteras negras foram mortos. Os militantes do Partido dos Panteras Negras, acabaram usando uma outra estratégia, atuar junto ao serviço social, ou mesmo dentro da estrutura dos partidos tradicionais.
O partido acabou teoricamente em 1982. “O faccionalismo também destruiu os Panteras. A liderança do Partido, quando desafiada a iniciar a prometida luta armada pela facção - depois conhecida por - Black Liberation Army, optou por tentar preservar aliados politicamente moderados, especialmente entre seus principais patrocinadores. Huey Newton, que então se deslocava para o centro da máquina democrata na Califórnia, e para a gestão de programas de assistência comunitária em nada diferentes daqueles que já vinham sendo realizados nas várias instâncias de governo, desmilitarizou a imagem da organização, abandonou a retórica revolucionária, promoveu expurgos e estabeleceu uma rígida estrutura burocrática de mando. Além disso, estreitou laços com pequenas máfias do submundo de Oakland, dinâmica de despolitização que acabou por afastar, sobretudo, aos aliados e rede de contatos entre a Nova Esquerda. Feministas e gays externos às comunidades negras já haviam retirado seu apoio antes disso, em razão do persistente sexismo que supostamente se definia como traço da atuação dos Panteras.”[4]
Notas:
[1] CHAVES, Wanderson da Silva. O Partido dos Panteras Negras (resenha), diponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2015000100359
[2] PETERSON, John. Sobre o Programa do Partido dos Panteras Negras: Que caminho seguir para os trabalhadores e jovens negros? - Parte I. Disponível em: http://www.marxismo.org.br/content/sobre-o-programa-do-partido-dos- panteras-negras-que-caminho-seguir-para-os-trabalhadores-e
[3] TABOR, Michael C. Capitalism Plus Dope Equals Genocide. Disponível em: https://www.marxists.org/history/usa/workers/black-panthers/1970/dope.htm.
[4] CHAVES, Wanderson da Silva. O Partido dos Panteras Negras (resenha), diponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2015000100359
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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