A PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE MULHERES NEGRAS E O BRANQUEAMENTO DO MAGISTÉRIO NO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

CONTEXTO: O presente trabalho é resultante de um seminário elaborado para da disciplina História da Educação Brasileira, ministrada pela Professora Pós-doutora Thaís Janaína Wenczenovicz, no Mestrado Profissional em Educação, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) no segundo semestre deste ano (2017). O ponto de partida foi o livro A história da Educação do Negros no Brasil, de Marcos Vinícius Fonseca e Surya Aaranovich Pombo de Barros, em especial o capítulo de Maria Lúcia Rodrigues Müller: A produção de sentidos sobre mulheres negras e o branqueamento do magistério no Rio de Janeiro na Primeira República. Nesse ínterim, música e poesia ilustram essa reflexão, ainda tão pertinente em nossa sociedade.

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás, ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo – horrível – parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto… E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras… Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades… Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir, mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho… (Cruz e Sousa. O emparedado.)


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A POESIA EM UMA ILUSTRAÇÃO PERTINENTE

João da Cruz e Sousa nasceu na Ilha de Nossa Senhora do Desterro, em 1871, e sua biografia ilustra muito o processo da inclusão/exclusão dos negros na história da escolarização do Brasil. Filho de um casal escravizado, após a morte deste, foi adotado por seus antigos senhores, que lhe proporcionaram uma educação de qualidade, a qual lhe desenvolveu como grande intelectual de seu tempo. Sabia francês, grego, latim; conhecia os clássicos na literatura; inseriu a poesia simbolista no Brasil; bem como dominava história natural, filosofia e matemática.

Embora esses predicados, Cruz e Sousa fora recusado para o cargo de promotor de Laguna, pois, para os governantes da época, um negro não era adequado à função. Logo, sua alternativa foi aceitar o emprego de arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, o que não lhe impediu de lutar pela causa abolicionista, contribuindo para diversos jornais. Teve uma vida difícil, perdeu todos os filhos pela tuberculose, sua esposa desenvolveu sérios transtornos psíquicos e o nosso Dante Negro morreu solitário e pobre em Minas Gerais (AMÂNCIO, MIRANDA & SIQUEIRA, 2013). 

Poderia ser a biografia de um homem que não teve muita sorte, mas sua trajetória nos mostra o quanto a Abolição da Escravatura trouxe liberdade, mas não a libertação de fato para os negros. Logo, mesmo uma revisão superficial da história, revela-nos que não houve nenhum projeto para a integração dessas pessoas à sociedade, pois não lhes foi garantido nenhum direito de acesso e/ou permanência à saúde, moradia, trabalho, educação, entre outros. Por conseguinte, a incapacidade de lidar com esse grupo social reverbera até hoje em nossa ampla desigualdade. 


2. A SOLUÇÃO ATRAVÉS DO BRANQUEAMENTO E A PREGAÇÃO EUGENISTA

O Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB), da Universidade Federal Fluminense, constatou que, no início do século XX, havia uma importante representação demográfica de mulheres negras no magistério público no Rio de Janeiro. Contudo, é notável que, no final da década de 1910, houve um processo de branqueamento nesse setor, resultante das políticas de modernização e racionalização do ensino público. Não obstante, a compreensão desse fenômeno se faz prejudicada por duas razões: primeiro, há poucas pesquisas sobre mulheres negras em atividades intelectuais; segundo, pela discriminação escamoteada naquilo que Maria Lúcia Rodrigues Müller chama de mecanismos sutis de evitação (MÜLLER, 2016).

Mesmo que não tenha sido explicitamente abordada, ocorreu uma negação do espaço intelectual, especialmente do magistério, às mulheres negras. Inicialmente, o processo foi o de gerar uma representação negativa dessa população nas instituições de ensino, através de médicos, educadores e juristas que pretendiam incentivar a eugenia como um modo de “correção” da raça neolatina, “degenerada” pela miscigenação racial com negros e indígenas. Logo, a metáfora da nação como um corpo biológico, cujo processo de transformação poderia não só ser observado e descrito, mas, sobretudo, ajustado e adequado aos projetos civilizatórios, perpassava o discurso das elites políticas e intelectuais no país durante as primeiras décadas do século XX (MÜLLER, 2016).

Ressalta-se o fato de que, à época da Abolição, quase toda a população negra já estava alforriada, resultado não somente das leis anteriores, como a Lei do Ventre Livre, como também por ações de resistência ao cativeiro. Logo após a assinatura da Lei Áurea, havia, nos centros urbanos do Rio de Janeiro, o esboço de uma classe média negra formada por trabalhadores de diferentes ofícios – sapateiros, lavadeiras, marceneiros, costureiras –, com especial destaque à inclusão da mulher nessas atividades laborais. Isso fez com que esse grupo se esforçasse, em boa medida, para garantir o acesso de sua descendência à escolarização, entretanto as marcas raciais, que não poderiam mais existir no âmbito jurídico, passaram a ser simbólicas. Assim:


[...] a aparência de saúde ou de doença, de beleza ou de feiura eram construções simbólicas da “superioridade” e “inferioridade” raciais. Também as representações sobre a “pouca” inteligência de negros e mestiços, sua “incapacidade” para estudos mais aprofundados, fazem parte de um conjunto de representações sociais, originárias da difusão das teorias racistas do século XIX. (MÜLLER, 2016)


Logo, todo um discurso com a falsa intenção de garantir o progresso do país, através de uma limpeza eugênica, recaiu sobre esse povo. O médico Afrânio Peixoto (1876-1947) defendia que se não fosse possível impedir a miscigenação, que fosse ao menos corrigida para que se formassem homens bons, honestos, sociáveis e não criminosos. Nessa seara, o poeta e professor Frota Pessoa (1875-1951) dizia que a educação cívica seria responsável por eliminar nossos vícios de raça; bem como o cientista João Batista de Lacerda (1846-1916), a exemplo do poeta Gregório de Mattos Guerra (1636-1696)1 e do escritor naturalista Aluísio Azevedo (1857-1913)2, destacava as fraquezas do homem branco ao entrar em contato com os corpos atraentes das mulatas. 

3. NEGAÇÃO DOS CORPOS: A MULHER NEGRA E DELIMITAÇÃO DOS ESPAÇOS INTELECTUAIS

Não obstante a tentativa de reduzir a mulher negra ao erotismo, o discurso eugênico delimitou sutil e progressivamente o acesso destas aos espaços intelectuais. Criou-se uma imagem negativa e estereotipada do corpo negro, levando o médico Renato Kehl (1889-1974) a defender a ideia da necessidade de uma esterilização compulsória e permanente, a fim de evitar a feiura de nosso povo provocada pela miscigenação racial. Ainda nesse viés, havia quem defendesse que a “correção” do fenótipo, corrigiria o caráter, provocando o colorismo (ou pgmentocracia), isto é, uma hierarquização que faz com que negros com traços caucasianos sofram menos preconceito (DJOKIC, 2017) e, em alguns casos, sejam preconceituosos com outros negros. Além de tudo isso: 
[...] não só os médicos eugenistas contribuíram para essa formação discursiva, que apreendeu a população negra de forma tão negativa. Outros intelectuais se dispuseram a contribuir e a engrossar o feixe de enunciados que impuseram discursos e práticas demarcadoras de espaços sociais dos grupos raciais minoritários, conferindo-lhes o lugar de outsiders em sua própria sociedade. A imprensa também foi uma agência poderosa na difusão dessa formação discursiva contra mulheres negras. (MÜLLER, 2016)

Tão logo, a pedagogia projetou esse discurso de forma a classificar, estereotipar e demarcar os espaços intelectuais. Assim, os discursos oficiais foram reorientados de modo a dificultar a inserção das mulheres negras no magistério, institucionalizando um racismo velado, a exemplo da reforma educacional Fernando de Azevedo, de 1927, que estabeleceu rígidas exigências para a ocupação das vagas, tais como idade entre 18 e 28 anos, condições de saúde e comprovação de hábitos higiênicos. Houve, então, um filtro, pois era exigida boa saúde de dentes e olhos; logo não é necessária muita inventividade para entender que a população menos favorecida no acesso aos serviços básicos de saúde, em especial os negros, não atendiam a esse pré-requisito. Logo:

O magistério carioca, possivelmente o brasileiro, passou décadas sendo reserva de mercado apenas dos professores brancos. Ainda hoje, professores negros são minoria em todos os graus de ensino, mesmo no ensino primário, que é o grau de ensino mais mal remunerado. É branco o magistério, como de resto são brancos praticamente todos os setores da elite brasileira. (MÜLLER, 2016) 

Por fim, a reforma passou a exigir a comprovação de boa conduta social, além de vocação individual e social para o magistério. Todavia, não bastasse o caráter relativo dessa norma, como atestar boa conduta social a mulheres que, desde a chegada de suas ancestrais, foram tomadas como objetos de luxúria e reiteradamente erotizadas ao longo de nossa história? Ainda havia a exigência da vocação familiar, o que significava, na teoria, que a candidata ao cargo do magistério precisava comprovar que a profissão já fora exercida por pais, tios ou irmãos; no entanto, na prática, isso eliminava boa parte das mulheres negras, uma vez que o acesso à escolarização de seus progenitores não apenas foi dificultado, como também proibido por muito tempo. 


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: OU NOVAS REFLEXÕES

Em 1878, a legislação brasileira permitiu a presença de negros nas escolas públicas, mas somente os libertos. Após a Abolição, estes não foram proibidos de acessar as escolas, porém sua permanência foi nitidamente tolhida por inúmeros fatores, como a impossibilidade de comprar uniformes, material didático ou merenda. Os que superaram esses impeditivos tiveram que lidar com o preconceito, como o das elites que contratavam professores para educar seus filhos em casa, para que estes não convivessem com negros nas escolas (ALMEIDA & SANCHEZ, 2016). 

Ainda nesse sentido, as reverberações de preconceito contra essa parcela da população ainda é constante no contexto atual, embora os diversos avanços para o combate ao racismo. Ressalta-se a notícia recente da mãe de uma criança que conversava em um aplicativo, mostrando-se indignada pelo fato de que a professora de uma de suas filhas é negra (SILVESTRE, 2017). O conteúdo da conversa deixa claro que o fenótipo da professora incomoda a mãe da criança por um imaginário estereotipado de que mulheres negras não são aptas à profissão docente.

Por fim, cabe a reflexão sobre os avanços conquistados com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e com a Constituição Federal de 1988. Aos poucos, foram abertos caminhos para a criação de políticas de reparação histórica. Porém, basta uma observação dos discursos atuais, e se percebe que as paredes do poema de Cruz e Sousa estão longe de serem derrubadas, pois, diariamente, há manifestações que tentam se amparar na legislação para defender o mito da democracia racial reiteradamente desconstruído por diversos pensadores nas últimas décadas. 

Portanto, a conquista dos espaços em todos os setores sociais, em especial nos intelectuais, ainda é um desafio que se faz presente. Nas palavras do rapper Emicida:

Trago em mim o que fez Zumbi merecer / o que fez Zumbi perecer, o que fez Zumbi aparecer / pra que nossa disposição / não se torne daqui a anos motivo de frustração / Firmão? Vou garantir o mínimo / Tô ligado que os cara bota fé / mas nóiz também quer um dízimo! (EMICIDA, 2017)


IMAGENS

Imagem 1: Blog do Jaurez. Disponível em: blogdojuarezsilva.wordpress.com. Acesso em: 16/12/2017.
Imagem 2: Afro Digital. Disponível em: 200.129.241.116/mafro/?p=111. Acesso em: 16/12/2017.

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NOTAS

Nota 1: Minha rica mulatinha, / desvelo e cuidado meu, / eu já fora todo teu, / e tu foras toda minha; // Juro-te, minha vidinha, / se acaso minha queres ser, / que todo me hei de acender / em ser teu amante fino, pois / por ti já perco o tino, / e ando para morrer. (GUERRA, 2017)
Nota 2: A teoria hereditário-determinista gerou uma horda de personagens de procedimentos cotidianos morbidamente patológicos. [...] Ressurgia vigorosamente a velha tentativa de interpretar a conduta humana a partir das diferentes raças e etnias. O europeu era sempre enaltecido como símbolo de pureza e força, enquanto os povos miscigenados eram tomados como racialmente enfraquecidos. [...] o que uniu Jerônimo a Rita Baiana é o desejo sexual, pois o português se rendeu aos encantos da mulata brasileira, circunstância que mostra a [suposta] sedução que a terra exótica exerceu sobre o colono espantado. (RAUPP, 2015)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M. A. B. & SANCHEZ, L. Os negros na legislação e educação formal no Brasil. In.: Revista Reveduc. São Carlos: ISSN 1982-7199, 2016. Vol. 10. Nro. 2. 

AMÂNCIO, A. M; MIRANDA, J. S. & SIQUEIRA, K. M. Cruz e Sousa: O negro como sujeito encurralado - Um diálogo de resistência em "Emparedado". In.: Revista Opará: Etinicidades, Movimentos Sociais e Educação. Paulo Afonso: ISSN 2317-9465, 2013. Ano 1. Vol. 2.

DJOKIC, A. Colorismo: O que é? como funciona?. Disponível em: blogueirasnegras.org/2015. Acesso em: 10/12/2017.

EMICIDA. É nóiz. Disponível em: vagalume.com.br/emicida/noiz. Acesso em: 10/12/2017. 

GUERRA, G. M. O espírito e a carne. Disponível em: gregmatoslirico.blogspot.com.br. Acesso em: 10/12/2017.

MÜLLER, M. L. R. A produção de sentidos sobre mulheres negras e o branqueamento do magistério no Rio de Janeiro na Primeira República. In.: FONSECA, M. V & BARROS, S. A. P. (Orgs.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: Eduff, 2016.

RAUPP, A. O cortiço, de Aluísio Azevedo. In.: SOUZA, M. J. (Org.). Leituras obrigatórias UFRGS 2016. Porto Alegre: Pallotti, 2015.

SILVESTE A. R. Professora de Minas Gerais é ofendida por mãe de alunas. In.: Site Geledés. Instituto da Mulher Negra. Disponível em: geledes.org.br. Acesso em: 01/12/2017.

SOUSA, Cruz. O emparedado. Disponível em: blogdojuarezsilva.wordpress.com/2014/. Acesso em: 01/12/2017.


Sobre o Autor:

Andreia Raupp: Professora de Língua Portuguesa e Redação em cursinhos pré-vestibulares de Porto Alegre e Região Metropolitana. Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FRGS). Pós-graduanda em Administração, Supervisão e Orientação Educação pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Mestranda Profissional em Educação pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).


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