Fonte da imagem: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252013000200023
Sim, você leu certo: um mito acreditar que os movimentos grevistas que tantas conquistas trouxeram à classe trabalhadora em nosso país começaram somente com a vinda dos imigrantes europeus. Por mais que a contribuição destes seja inegável, do mesmo modo não se pode ignorar todo o protagonismo dos escravos negros em nosso país nas lutas trabalhistas.
Protagonismo dos escravos negros em movimentos grevistas? Isso mesmo. E um exemplo desta afirmação pode ser visto num episódio no ano de 1789, na localidade de Ilhéus, na Bahia, quando um grupo de escravos se amotinou, exigindo a liberdade de trabalhar em suas próprias roças de sexta-feira a sábado, assim como a liberdade de “brincar, folgar e cantar em todos os tempos em que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso pedir licença”. E qual foi o resultado disso? Os escravos tiveram suas exigências respeitadas, ainda que inicialmente somente.
O que não se fez um caso isolado. Principalmente na Bahia, onde havia uma das maiores concentrações de escravos no Brasil do século XIX. Entendido isso, podemos nos ater um pouco mais sobre este ocorrido na localidade de Ilhéus, onde no chamado Engenho de Santana, em que esse grupo de escravos primeiramente matou ao feitor que cometia diversos abusos, se apoderando de alguns equipamentos antes de fugirem para a floresta onde deram início a um quilombo isolado.
Fato que, aliás, se repetiu nos anos de 1821 e 1828, tendo todos os casos ainda mais uma outra peculiaridade: após o fracasso das diversas tentativas de expedições militares em reprimir essas rebeliões, os escravos elaboraram “tratados de paz” em que negociaram as cláusulas que fixavam as condições a serem cumpridas pelos seus donos, para somente então voltarem ao cativeiro. Algo muito semelhante as atuais negociações trabalhistas hoje, não acham?
Mas caso, essa informação pareça um pouco difícil de se compreender, então que vejamos um pouco mais. A começar pela realidade de Ilhéus na época, em que era um grande centro de produção açucareira. O engenho de Santana produzia em média meia tonelada de açúcar por escravo, contando ela com um total de 300 trabalhadores escravizados. O trabalho no beneficiamento do açúcar, até hoje complexo, não poderia ser feito por qualquer operário sem alguma experiência, tornando assim estes escravos conscientes de sua importância estratégica.
O que lhes leva a elaborar uma série de exigências bastante coerentes, exceto para as mentalidades mesquinhas dos senhores de escravos, como o proprietário do Engenho de Santana, Manuel da Silva Ferreira. Podendo sobre as mesmas também citar o pedido de destinação das sextas e dos sábados das semanas para que os escravos pudessem trabalhar para si próprios, tal como o compromisso do senhor destinar a eles “rede, tarrafa e canoas”, além de poderem plantar o “arroz onde quisermos, e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem darmos parte para isso”.
O que não era algo inédito, concessões de direitos aos trabalhadores escravos, em vista de que já havia antecedentes, como a chamada “brecha camponesa” que era a concessão de pequenos lotes de terra voltados para a subsistência dos escravizados ou mesmo alimentação do mercado interno.
Sob a liderança de um dado Gregório Luís os rebeldes apresentaram ao senhor sua lista com 19 artigos em que deixavam claros seus objetivos e interesses. Isso mesmo. 19 artigos. Podendo dentre estes igualmente citar as exigências quanto ao regime de trabalho, como redução das cotas femininas de cultivo da mandioca, redução de 30% da cota diária dos cortadores de cana e número mínimo de escravizados escalados para determinadas tarefas e atividades. Isso tudo além do direito de escolher os feitores, a oferta de mais transportes para vender seus produtos (com isso reduzindo os custos de fretagem) e controle dos equipamentos do engenho, por exemplo.
Solicitações em nada diferente dos movimentos sindicais que o mérito nos livros escolares recaí unicamente aos imigrantes europeus, omitindo assim todo o protagonismo dos escravos negros em nosso país. E aos que queiram achar que este episódio de Santana foi um caso isolado, além de situações similares nos anos de 1821 e 1828, também podemos comentar sobre o movimento que foi noticiado no próprio jornal da época, o Jornal da Bahia, de 2 de junho de 1857.
Quando este anunciou a greve negra em Salvador, capital da província (hoje estado) da Bahia. Greve sem anúncio. Sem agitação. Tudo parou. Exatamente no dia 1º de junho de 1857. A cidade da Bahia amanheceu sem transporte, sem ninguém para carregar nada. Por assim se dizer pode-se usar a expressão de que os escravos tomaram chá de sumiço. Salvador devia contar com 80 mil habitantes, número não maior (podendo ter chegado 90 mil pessoas não fossem as cerca de 10 mil pessoas vitimadas pelo cólera no ano anterior).
E como eram os negros, escravizados, libertos ou livres, os operadores do sistema de transporte de gente e de carga da capital baiana, pode se imaginar o caos que se tornou com isso. Exagero? Aos que acham que sim vale destacar a máxima local criada pelo alemão Robert Avé-Lallemant de que “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”. Com isso, então é obvio que a cidade parou totalmente.
Toda a agitação costumeira, todo o barulho das mais variadas vozes, entremeados com gritos e assovios, assim como o burburinho rotineiro, como que fosse por encanto desapareceram naquele 1º de junho, uma estranha perturbadora silenciosa segunda-feira. Literalmente como se fosse na canção, “O Dia que a Terra Parou”: “(…) naquele dia ninguém saiu de casa como se fosse combinado (…)”. E deste modo os soberbos senhores e suas sinhás se viram sem transporte. Todas as encomendas que eram antes carregadas pelos negros, agora de todo paradas nos cais.
Em vista de todo este cenário, então a solução para o impasse não poderia ter sido outra: os escravos negociaram seus termos. Sim, negociaram, ao longo dos séculos de relações escravagistas, mais do que lutaram abertamente contra o sistema. O que não deixou de ser uma luta, sem dúvida, uma permanente e clara resistência. Como neste caso do confronto de 1857, pacífico, uma greve urbana, sem sindicatos, ao menos como conhecidos contemporaneamente.
Mas a quem achar que é só isso que se pode contar sobre o protagonismo dos escravos negros nas lutas trabalhistas, que então aguarde a sequência deste artigo onde veremos o quão grave é a omissão desta passagem da história em nossos livros. E a única forma de mudar isso é justamente mostrando ao máximo de pessoas que vejam como as lutas trabalhistas em nosso país, ao contrário do senso comum propagado, se fizeram muito antes da imigração europeia.
Sobre o autor:
LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná), é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.
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