A SITUAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EM CANOAS: Uma história pós-enchente

A cidade de Canoas é uma das mais importantes da região metropolitana de Porto Alegre. Com cerca de 340 mil habitantes, ela tem o terceiro maior PIB do estado do Rio Grande do Sul (atrás de Porto Alegre e Caxias do Sul – em dados de 2021). Suas principais atividades econômicas são o comércio e serviços. Canoas tem uma base aérea, que, além de muitos canoenses, recebe militares do Brasil todo. A cidade também possui uma importante refinaria (REFAP – Refinaria Alberto Pasqualini), que produz gasolina, óleo diesel, querosene para aviação entre outros subprodutos petroquímicos.

Em 2024 a cidade foi uma das mais atingidas pela enchente, que se estendeu entre maio e junho. Nos noticiários, as imagens que mostravam bairros inteiros em baixo d’água chegaram a todos os cantos do mundo. Em alguns pontos, apenas os telhados das casas ficaram visíveis. Essa tragédia foi resultado de vários fatores: a incompetência do governo municipal, a falta de planejamento urbano e as mudanças extremas do clima (algo que está impactando o planeta todo e que é causada pelo sistema capitalista). A enchente marcou a vida e a memória de milhares de moradores de Canoas, que perderam tudo em questão de horas. Impactou também de forma indireta muita gente que ajudou nos abrigos como voluntários, além de muitas pessoas abrirem espaço em suas casas para acomodar os desabrigados foram atingidos pela enchente.


Monumento denominado “O futuro”, na Praça da Emancipação, centro de Canoas.
Na base do monumento está escrito que é uma homenagem ao trabalhador. Foto: Fábio Melo.


Este pequeno estudo é, de certa forma, o resultado da minha campanha para vereador na cidade, em 2024. Fui candidato pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do município, e durante a campanha pude conversar com centenas pessoas, em vários bairros diferentes. A metodologia usada foi muito rudimentar: eu me apresentava para as pessoas nas ruas e falava de minhas propostas para vereador. Muitas dessas pessoas se mostravam abertas para conversar sobre suas situações. Assim, além de falar sobre mim, passei a interrogá-las sobre suas vidas e como enfrentaram a enchente. Outras pessoas com as quais conversei já eram conhecidas.

Evidentemente não vou expor o nome real dessas pessoas, então os nomes que aparecem aqui não correspondem aos nomes reais.

Também não pude anotar todas as conversas que tive, afinal estava em campanha e não realizando um trabalho de história oral ou pesquisa. Ainda assim, essa pequena amostra da situação de homens e mulheres canoenses têm sua validade; não como um estudo definitivo mais amplo e detalhado, mas como fonte para entendermos como vive essa parte da população e que tipo de políticas públicas elas realmente precisam para ter uma vida mais confortável. É um pequeno recorte que tem sua validade enquanto registro e fonte histórica. Quem sabe, daqui alguns anos surjam novas pesquisas que abordem o mesmo tema – uma pesquisa mais rigorosa, que envolva falar com mais pessoas e coletar dados empíricos, o que, evidentemente, levaria muito mais tempo do que eu tive disponível (e num contexto diferente, que não envolva uma campanha política, dessa forma tornando a pesquisa menos “enviesada”).

É importante perceber que, neste texto, não abordo apenas uma categoria de trabalhadores. Aqui temos trabalhadores aposentados, funcionários públicos, autônomos e pequenos comerciantes.



  Imagem de satélite disponível no Google.


Os relatos que seguem, foram coletados entre agosto e setembro de 2024.

Em uma das minhas caminhadas conheci o senhor Alberto, na avenida Boqueirão, bairro Igara. Com mais de 65 anos, Alberto era aposentado da empresa municipal de ônibus (SOGAL). Ele me disse que vive bem com a aposentadoria e não reclamou do salário que ganhava quando estava na ativa – foram, segundo ele, mais de 25 anos trabalhando na empresa. Alberto perdeu sua casa na enchente e estava morando com o filho, no lado da cidade que não foi atingida. (Canoas pode ser dividida em duas partes, o lado leste e o lado oeste, que foi atingido pela enchente. A “linha divisória” é a BR 116). Fazia alguns dias que Alberto estava tentando ganhar os benefícios do governo para quem perdeu sua casa, mas não conseguia, segundo ele, por causa da burocracia.

João, por sua vez, é funcionário público do município. Morava no bairro Mathias Velho, que ficou com cerca de 5 metros de água, no pico da enchente. No momento quem visitei João, ele estava residindo no bairro São Luís. Ele me contou que certo dia, junto com um grupo de amigos, foi até sua antiga casa, com a água batendo em seu peito. Foi um golpe duro para João. O trabalho de uma vida toda engolida pela água podre da enchente.

Laura mora no bairro Rio Branco, que também foi atingido pela enchente. Ela, o marido e o filho recém-nascido, estavam há poucos meses na casa de dois pisos quando iniciou a enchente. No momento em que a água começou a invadir a casa, eles rapidamente colocaram no segundo piso tudo que conseguiram. Em seguida, foram para casa de parentes em Porto Alegre, até que a água baixasse. Laura trabalha de forma autônoma. Sem um salário fixo ou outras garantias sociais do trabalho, Laura aguardava algum benefício do governo para poder se organizar e seguir em seu negócio próprio. Enquanto isso, seu marido era a única pessoa da família a ter uma renda fixa. A jovem também conta com o apoio econômico da família.


Uma casa no bairro Rio Branco. As marcas da enchente na parede mostram a altura que chegou a água.

Foto: Fábio Melo


No mesmo bairro Rio Branco conversei com os senhores Arnaldo e Felisberto. Ambos aposentados. Um deles, Arnaldo, fazia alguns trabalhos em marcenaria, para completar a renda. Ambos estavam muito revoltados com a prefeitura do município. “Se o prefeito aparecer aqui, matamos ele!” esbravejou Felisberto. Após anos juntando dinheiro para construir seus patrimônios, eles se viram obrigados a sair de suas casas com a enchente. Em meio as ruas entupidas de entulhos, ambos tentavam organizar aquilo que sobrou de suas casas.

Roberta, por sua vez, não foi atingida diretamente pela enchente. Vive no bairro Guajuviras, que não foi atingido. Porém, ela trabalha como diarista e com a enchente seu trabalho diminuiu drasticamente. Roberta tem dois filhos: um, mais velho, que mora com a esposa e a ajuda como pode, e uma pequena, que está nos anos iniciais do ensino fundamental. Durante a enchente, Roberta abrigou em sua casa alguns parentes, que moravam no Bairro Mathias velho.

Ainda no bairro Guajuviras, mora Antônia. Ela mora com os pais e trabalha em Porto Alegre. Uma vez que a enchente afetou diretamente o trem que liga Canoas a Porto Alegre, Antônia ficou impossibilitada de ir para o trabalho. Ela trabalha como estagiária no serviço público e fazia seu serviço online enquanto a água não baixou. Antônia tem uma opinião bem ponderada sobre o papel do poder público na enchente. Ela não acha que a culpa é do prefeito, alega que foi um acúmulo de erros de vários governos que nunca deram importância para uma enchente e por isso não fizeram obras nos diques que deveriam proteger a cidade.


Rua no bairro Mathias Velho. Foto: F


No bairro Niterói conversei com Vitor. Ele também é professor, como eu. A escola em que leciona ficou totalmente debaixo d’água. Ele passou a dar aulas de forma remota, como na época da pandemia. Segundo Vitor, a água quase chegou em sua casa. Assim como Vitor, Manuela, também moradora de Niterói, dona de casa aposentada, sentiu falta do transporte público, que segundo eles, simplesmente parou de passar durante a enchente, em regiões que não alagaram. E mesmo depois que a água baixou, as linhas de ônibus não retornaram aos seus itinerários pré-enchente.

Rubens tem um pequeno comércio no centro de Canoas. Ele vende fones de ouvido, capinhas para celular, caixinhas de som e outros dispositivos eletrônicos. Embora pertença à classe trabalhadora, Rubens se considera “acima dela”. Como se seu pequeno comércio o colocasse automaticamente numa categoria de “burguês”, dono de seu próprio negócio, logo (pensa Rubens) ele não depende de um salário para viver. Rubens me contou que não foi atingido pela enchente. Não me revelou onde mora. Porém, disse que o problema do município é a “roubalheira” dos políticos e que tudo deveria ser privatizado. Questionei Rubens, esse filho da classe trabalhadora que na prática é um lumpemproletario¹, se ele tem dinheiro para matricular seu filho em escola particular, ou se pode pagar um plano caro de saúde e segurança particular para sua loja. E se depois de pagar tudo isso ainda lhe sobraria dinheiro para se alimentar, vestir e comprar os produtos que vende em sua loja. Após alguns segundos pensando, Rubens disse que não tinha como. Então eu disse a ele que é por isso que devemos lutar por serviços de qualidade. Rubens parece que entendeu a mensagem, mas finalizou a conversa com um “esses políticos precisam parar de roubar”.  

Uma das pessoas com as fiz mais contato foi o militante social Alex Abel, morador da Mathias (bairro Mathias Velho) e que também foi atingido pela enchenteAlex foi voluntário nos resgates ao longo da enchente. Seu impressionante relato sobre os dias terríveis estão disponíveis no programa História em Pauta, no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=awNVoRWLTxE

Essas histórias, de refletem uma parte considerável da classe trabalhadora canoense, nos mostram como os governos, as empresas e a sociedade em geral parece anestesiada em relação ao caos climático que estamos vivendo. Será que em momentos de enchente, ou de calor extremo, as jornadas de trabalho serão felxibilizadas? Ou os trabalhadores deverão fazer de tudo, enfrentar calor extremo e inundações fatais para chegar ao seu local de trabalho? As empresas estão preocupadas com isso? Os governos estão preocupados com isso? Novas estratégias de mobilização e planos de fuga de enchentes foram feitos? Tecnologias e barreiras foram aprimoradas para conter novas enchentes? Ao que parece não.

Essa situação, em que o caos está instalado, mas a maioria está preocupada apenas em bater o ponto, não se atrasar para o trabalho, ou lucrar com seu negócio me faz pensar no livro Colapso do geógrafo Jared Diamond. Na obra, o autor discorre sobre várias sociedades que, ao longo do tempo, em lugares diferentes, entraram em colapso, devido a fatores ambientais, sociais e econômicos. Em um determinado capítulo, Diamond analisa o caso da sociedade da ilha de Pascoa, famosa por seus moais. Sobre os impactos ambientais que os pascoenses forçaram em seu meio ambiente, está a questão do desmatamento de florestas. “O que os insulares de Páscoa que cortaram a última palmeira disseram enquanto faziam aquilo?”. Interroga, retoricamente, Diamond. “Será que, assim como os modernos madeireiros, terão gritado: ‘Trabalho sim, árvores não!’? Ou: ‘A tecnologia resolverá nossos problemas, não tema, vamos encontrar um substituto para a madeira’?”²

Assim como os pascoenses, estamos lidando com as mesmas questões, numa escala global. E enquanto o sistema destrói o nosso meio ambiente, seguimos nossas vidas normalmente, como se não houvesse um colapso ambiental. Talvez as respostas venham tarde demais. Seja em Canoas, seja em qualquer lugar que será diretamente afetado pelas mudanças climáticas extremas em curso.

O que vemos em comum, no caso da classe trabalhadora canoense apontada neste brevíssimo estudo, são homens e mulheres que em grande parte são desassistidos dos governos. A “máquina” pública sob o viés neoliberal se conforma em apenas prestar serviços de má qualidade: disponibilizar escolas (mesmo que as condições de trabalho de professores sejam péssimas), postos de saúde (mesmo que não hajam funcionários suficientes para atender as especialidades) e segurança (mesmo que não se qualifique os setores de inteligência). É preciso conscientizar essa classe trabalhadora em pautas comuns, e ter um certo cuidado para evitar que a crítica ao governo neoliberal seja entendida como a privatização dos serviços públicos – o que beneficiaria ainda mais o sistema neoliberal que é contrário ao estado de bem-estar social que todos precisamos.


NOTAS:

¹ Para saber mais, leia: http://geaciprianobarata.blogspot.com/2018/02/lumpemproletarizacao-do-trabalhador.html

² DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2020, p. 147.


Sobre os autor:

 

Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Professor de escola pública. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Desenhista amador, tem um blog sobre quadrinhos, com resenhas e ênfase em histórias autorais: https://guerrilhacomix.blogspot.com/


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