SOBREVIVENDO AOS ESTADOS UNIDOS: Os nômades do século XXI

 

O livro “Nomadland: sobrevivendo na América no século XXI” da jornalista Jéssica Bruder é um retrato do evidente: o sistema capitalista não funciona! Alguns incautos podem até se perguntar: “Ora, mas se o sistema não funciona, como está aí há mais de 5 séculos, gerando riqueza e de alguma forma melhorando a vida das pessoas?”

A esta pergunta eu respondo: as riquezas não são geradas para serem distribuídas de forma justa, em geral ficam concentradas nas mãos de algumas pessoas. Em relação a melhoria de vida de muitas pessoas, como o acesso à saúde, educação e aumento da expectativa de vida, a resposta é: se houve melhorias não foi graças ao sistema, mas apesar dele!

Mas então se o sistema é falho, como dura por tanto tempo?

Essa questão é mais fácil de responder. Dura a tanto tempo porque os que controlam o sistema não são capazes de reverter seu funcionamento. Já estão há gerações se beneficiando às custas de milhões que vivem na miséria. Mesmo com todos problemas sociais e ambientais que o sistema capitalista vem causando, nenhum grupo de países ou corporações ousa abandonar suas práticas destrutivas.

No mais, como é possível um sistema dar certo se não proporciona conforto para as pessoas? No caso do então país mais rico do mundo (um agora decadente Estados Unidos), como é possível um sistema dar certo se não há saúde gratuita e de qualidade para todos? Se estudantes passam a vida com o peso das dívidas do financiamento estudantil? Se as economias e o patrimônio de uma vida toda viram pó por causa dos caprichos do sistema financeiro?

É justamente a crise do sistema financeiro de 2008¹ o ponto de partida do livro de Jéssica Bruder. Essa crise (mais uma de um sistema que vive de crises…) foi responsável pela mudança radical de milhares de estadunidenses, em sua maioria de meia idade, entre seus 60 e 70 anos. Após uma vida de empregos relativamente estáveis (enquanto vigorou o estado de bem-estar social nos Estados Unidos, entre as décadas de 1930 e 1980), que proporcionou a aquisição de casas e a expectativa de uma boa aposentadoria (com a aplicação em fundos de aposentadoria), trabalhadores estadunidenses viveram sua ruína com a crise. A partir de 2008 o valor dos imóveis despencou. Já não era mais possível pagar a hipoteca. Os fundos de aposentadoria evaporaram. As dívidas aumentando. Sem alternativa, a opção foi a vida nômade: comprar um trailer equipado para viver na estrada com o mínimo possível, numa constante busca por empregos precarizados e temporários.



No livro Nomadland, alguns encaram esse estilo de vida como libertador (sem pagar hipotecas e outros impostos relacionados a propriedades imobiliárias). Mas na prática revela o verdadeiro lado do sistema: sem políticas sociais de proteção à velhice, sem saúde pública adequada, com a previdência irrisória e a mentalidade estadunidense de que “depender do Estado é ruim”, as pessoas lutam pela sobrevivência na única forma possível: o estilo de vida nômade.

Esses nômades do século XXI acabaram criando uma cultura própria, uma forma de vida peculiar, compartilhada em fóruns de internet e encontros anuais. Para manter esse estilo de vida, eles trabalham em empregos temporários, durante alguns meses por ano, seja como monitores de acampamentos, vigilantes em florestas, na colheita de beterrabas ou nos depósitos da Amazon. Quando acaba o período no emprego, eles se deslocam para outros estados, em busca de mais uma vaga temporária. Existe até um termo criado para esse tipo de trabalhadores: workampers – a junção de work (trabalhar) e camper (campista; de acampar com os trailers perto dos locais de trabalho).

“Os workampers são mão de obra pronta para uso, o epítome da conveniência para empregadores em busca de pessoal temporário. Eles aparecem onde e quando são necessários. Levam a própria casa, transformando estacionamentos em cidades-empresa efêmeras que se esvaziam depois que os trabalhos terminam. Não ficam juntos por tempo suficiente para se sindicalizarem. Em trabalhos que são fisicamente difíceis, muitos ficam cansados demais até para socializar depois dos turnos”²

A jornalista Jessica Bruder se entrega de verdade na elaboração de sua obra. Além de entrevistar centenas de nômades, ela passa pela experiência de viver em uma van e trabalhar como uma workamper!

O livro inspirou um filme de mesmo nome que chegou a ganhar importantes prêmios em 2021. A obra nos faz pensar sobre a decadência do capitalismo, suas falsas ilusões inculcadas na mente das pessoas e também sobre o que realmente é um padrão de vida adequado para as pessoas. E mais, nos faz pensar sobre as relações sociais e de trabalho nestas primeiras décadas do século XXI.  


NOTAS:

¹ Para saber mais sobre a crise de 2008, acesse: https://geaciprianobarata.blogspot.com/search?q=crise+de+2008

² BRUDER, Jessica. Nomadland: sobrevivendo na América no século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2021, p. 75. 


Sobre os autor:

 

Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Professor de escola pública. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Desenhista amador, tem um blog sobre quadrinhos, com resenhas e ênfase em histórias autorais: https://guerrilhacomix.blogspot.com/


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...