ZUMBI DOS PALMARES: vendo mais ao homem e menos ao mito PARTE 06: sobre a sua relevância como um símbolo nacional



Vimos no artigo anterior que qualquer tradição, vulto histórico, símbolo identitário se faz algo artificial, sendo a sua escolha condicionada a uma intencionalidade de quem o promove. Acontecendo que a escolha de Zumbi como um símbolo do movimento negro no Brasil, se fez pela sua imagem de um guerreiro obstinado ao fim martirizado. Escolha por este perfil a representar a identidade negra brasileira no final da década de 1970, devido ao anseio coletivo por algo que demonstrasse dali em diante, o contrário de décadas de passividade imposta pela segregação racial em nosso país.

Do mesmo modo que vimos que seu vulto, com o correr do tempo e o alvorecer do revisionismo histórico, igualmente passou a receber constantes críticas e até se tornou objeto de debates sobre a sua substituição por outro herói considerado mais “legítimo”. Fato que não se restringe somente a Zumbi, mas à maioria dos vultos históricos em voga. E é a partir deste ponto que vamos analisar a relevância de Zumbi como um símbolo nacional atualmente.

Zumbi dos Palmares, por Antônio Parreiras 


Fenômeno este, de “heróis” que atualmente se debate se deveriam dar lugar a outros (isso quando chegam mesmo a ser discutidos se não deveriam ser mandados para a lixeira da história) que, vale a pena se reforçar que não se restringe nem só a Zumbi. Muito menos ao Brasil. Pois ele se acha presente, de uma forma ou outra, nas mais variadas sociedades.

Como, por exemplo, dentre outros, a figura de William Wallace, rebelde escocês contra a invasão da Inglaterra ao seu país no século XIII e que por isso se fez um personagem muito conhecido na identidade cultural da Escócia. Em parte, também, justamente pelo seu fim trágico, semelhante ao de Zumbi. E como o líder quilombola aqui analisado, este Wallace tem tido, pela moderna historiografia, muito dos méritos, até então exaltados historicamente por seus propagandistas, agora questionados.

Sendo uma curiosidade talvez interessante o fato que um filme sobre sua vida fez grande sucesso no ano em que foi produzido, 1995, Coração Valente, estrelado pelo ator Mel Gibson.


Mas voltando à realidade de nosso país, o Brasil, “heróis” em debate sobre serem ou não vistos como tal, igualmente abundam. Como é o caso da figura do líder religioso Antônio Conselheiro, responsável pelo evento que ficou conhecido nos livros como a Guerra de Canudos (1896-1897). Que pelo ponto de vista da história tradicional foi descrito como um fanático religioso, acontecendo que o revisionismo histórico atualmente o eleva a um grande símbolo das lutas de classe.

Chegando uns até mesmo a lhe definir como um “socialista” que lutava para criar uma comunidade igualitária no meio do sertão da Bahia. E que por isso os poderosos locais se sentiram obrigados a lhe destruir. Exemplo este interessante aqui citar porque neste personagem se percebem dois extremos. Na visão tradicional um criminoso ao passo que o revisionismo cria um Conselheiro revolucionário. Ambas versões que, com um maior aprofundamento nos debates históricos, se pode concluir que igualmente não correspondem à realidade.

Pois um “herói” ou um “vilão” se faz sempre em função dos que o olham, quando se enxergam junto a interesses ou ameaças representadas na sua perpetuação de sua memória.

E, caso seja preciso mais um exemplo, o que dizer então de Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do Exército e cujo nascimento hoje é o chamado dia do Soldado (25 de agosto)? Para a historiografia tradicional um herói a ponto de seu “nome” Caxias ter se tornado sinônimo de pessoa que segue à risca o que entende serem suas obrigações. Já para seus críticos um instrumento de opressão a serviço do status quo escravagista e elitista da época. Ou seja, novamente, sob um extremo ou outro. Nunca um meio termo.

Ainda mais porque além das interpretações que variam sobre os fatos já comprovados, também contribui para isso os diversos mitos que para muitos se confundem com a realidade. Principalmente por serem, não raro, mais interessantes no intento de se justificar um dado ideal pregado.

Como o fato de que é provável, como já vimos antes, que Zumbi talvez nunca tenha vindo a ser escravo. Mas esta versão o torna mais cativante como um símbolo de luta contra a opressão e a exploração. Tal qual não se pode afirmar com plena certeza que ele foi de todo contrário a um acordo de paz conduzido por seu tio Ganga Zumba (que neste caso, talvez ele possa ter tentado apenas exigir maiores vantagens neste pacto, que assim o inviabilizou). Por ora, apenas incertezas e, talvez, realmente apenas mitos, lendas. Ou não.

Contudo, nada disso responde ainda ao nosso ponto principal agora: a figura de Zumbi como símbolo máximo a representar toda a uma coletividade, no atual contexto em que vivemos ainda se faz relevante? Pois em um Brasil que começava a se livrar de uma asfixiante repressão imposta pelo regime totalitário em vigor nas décadas de 1960, 1970 e 1980 se fez plenamente coerente em um momento que vozes que por longo tempo eram reprimidas querer “gritar” todo o seu ressentimento acumulado, então elegerem a figura de um guerreiro obstinado.

Logo, como conclui o pesquisador gaúcho Vinícius Finger em 2012: “Zumbi se torna o mito fundador da luta do homem negro contra os opressores” (...) feito em um “mito do invencível herói de Palmares” para assim representar uma construção moderna da identidade negra brasileira. O que nos leva a ratificar a grande questão: hoje, em meio a um crescente discurso de luta sem o uso da violência, a imagem de um símbolo que evoque a esta luta contra a desigualdade tomado de um histórico, justamente de luta violenta, guerreira, belicosa, se faz ou não controversa?

Tendo também esta mesma imagem de um guerreiro negro martirizado por opressores brancos, igualmente, ainda que não explicitamente, a possibilidade de ajudar a fomentar um dado ranço sobre esta passagem vergonhosa de nossa história. Que se por um lado ela não pode ser esquecida, por outro também não pode servir como ponta de lança para acusações às atuais gerações de erros cometidos pelos que as antecederam. Não que devamos, por outro lado, tentar encobrir, como foi feito no passado, à ferida ainda em aberto da exploração e da discriminação racial em nosso país. Porém, importando se perguntar: Zumbi ainda representa o mesmo anseio de quando foi elevado na década de 1970?

Ainda mais não faltando referências que se enquadrem neste perfil de um lutador que muito venceu sem precisar criar um sangrento confronto aberto (guerra). Como é o caso de Luiz Gama, jornalista e advogado rábula que teria conseguido a libertação de em torno de 500 escravos, além de um intenso propagandista da causa abolicionista. Um exemplo que em nada cria uma suposta ideia de acomodamento ou passividade. Quando sim o contrário.

Luiz Gama, patrono da abolição da escravidão


Ou então o mulato Nilo Peçanha que, apesar de todos os preconceitos que sofreu somada a sua origem humilde, se tornou vice-presidente e depois presidente do Brasil (de 1909 a 1910). Que apesar de suas controvérsias (como a de ter feito parte da politica do Café com Leite, dentre outras) não deixa de ser uma referência importante as atuais e futuras gerações de jovens negros sobre a possibilidade real de ascensão social em que podem se inspirar.

Citando somente dois dentre vários exemplos que poderíamos comentar, tanto como a enorme contribuição intelectual dos negros brasileiros ao nosso país e ao mundo, como foi o caso do geógrafo baiano Milton Santos. Exemplos que até, por certo, se tornam objeto de críticas aos que julguem que o combate à discriminação racial precisa ter como símbolo um “verdadeiro” guerreiro. Porém, se apegar a esta ideia não seria estar se fechando os olhos às mudanças de mentalidade?

Pois igual Isabel, princesa que assinou a Lei Áurea, a história viu seu simbolismo à identidade negra se tornar defasado, será que o vulto de Zumbi, por mais hajam resistências sobre isso, igualmente não pode estar se tornando obsoleto? Tanto que aos que justifiquem que são dois casos distintos, é interessante ver que nas redes sociais atualmente é muito comum, justamente, um esforço em dar, novamente, maior espaço a esta mesma Isabel como símbolo da causa negra. Sim, pois o “heroísmo” depende de que valores se buscam nele como, por exemplo, um crescente “saudosismo” da monarquia que assim acha interessante “resgatar” o legado de um dos seus grandes símbolos.

Logo, mais uma vez vemos uma intencionalidade na substituição de um “herói” por outro. Além, é claro de mais uma vez o extremo “herói”-“vilão”, justamente o que consideramos não precisar chegar a tanto. Pois apesar de todos os pontos negativos que são (com ou sem razão) atribuídos à sua memória não há motivos para lhe renegar à lixeira da história. Até porque enquanto um símbolo produz quaisquer efeitos benéficos que ele continue a existir, até o ponto em que ele não se torne um objeto de culto cego, idolatria inflamada, com o agravante de que a maioria de seus devotos não queira de perceber da adoração que façam, nem os riscos deste extremismo.

Logo, por mais que a perpetuação de seu simbolismo no imaginário geral se mantenha por longo tempo, sobre a sua substituição (igual antes ocorreu a Isabel) uma simples pergunta a justifica: Com quem as novas gerações de jovens negros podem mais se identificar: com um aristocrata (neto e sobrinho de monarcas que era Zumbi) ou um indivíduo em seu início marginalizado pelo sistema que o enfrentou e teve sucesso (como Luiz Gama, Nilo Peçanha, dentre outros)?

Não levando em conta nenhuma de suas polêmicas que as abordamos, até porque, inclusive, elas também se devem a uma série de fatores como os observamos anteriormente.

Portanto, a justificação de sua substituição se faz sobre a sua capacidade de melhor inspirar à posteridade com seu legado neste atual momento (e não em caráter perpétuo). O que os defensores de Zumbi, possivelmente, podem alegar que ele ainda cumpre seu papel, continuando sendo uma inspiração forte a milhões de negros em nosso país.

Mas sobre isso então pergunto: que tal inspirar a uma luta não apenas esperando concessões de fora (a reparação da dívida histórica pelas autoridades que é fato ela ser importante, mas sua concretização real esbarra em uma série de interesses)? Principalmente insistindo numa alta estima da coletividade negra que, talvez, assim, consiga chegar mais facilmente à justiça histórica que, para de fato acontecer, precisa tornar os negros protagonistas em nossa sociedade. Para isso vendo que sua história também tem vitórias.

Logo, não o jogar à lixeira da história, reitero, quando sim apenas dar vez a outra estrela ganhar mais visibilidade para atender a um novo contexto, até outro cenário possa mais uma vez exigir uma nova substituição. Por que não? Pensemos nisso...


Sobre o autor: 

LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná) é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, especialista em ensino religioso e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como as obras locais “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais” (em parceria com Isolde Maria Waldmann) e “Memórias e reflexões sobre um povo: Colônia Sutil”


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