A História Popular do Brasil estuda os movimentos dos trabalhadores, como as lutas dos sindicatos, as revoltas populares, os quilombos. Mas não fica nisso, adentrando na magia, feitiçaria, bruxaria, macumba, e nas práticas espirituais e religiosas marginais como algo de igual importância.
Dentro deste campo de pesquisas, está o culto a entidade de Maria Padilha no Brasil, presente desde os tempos coloniais. Ora, como afirma Laura de Mello e Souza, no prefácio à obra “Maria Padilha e toda a sua Quadrilha – De amante de um rei de Castela, a pomba-gira de Umbanda”, ela era presença constante nos rituais realizados por mulheres degredadas da Europa.
O nome de Maria Padilha era conjurado em magias feitas a serviço da clientela que procurava Antonia para soluções amorosas ou para enfrentar problemas do cotidiano. Somado a isso, observamos que o estudo sobre Antonia Maria é muito relevante para a historiografia, considerando que foi o primeiro registro de devoção à Maria Padilha do Brasil.
Este texto é uma introdução a uma pesquisa sobre o culto a Maria Padilha na América Portuguesa, com foco na trajetória de Antonia Maria, feiticeira degredada que atuou na província de Pernambuco no século XVIII. A partir desta experiência, a investigação busca compreender de que modo a feitiçaria operou como forma de resistência e expressão de religiosidades populares no Brasil Colonial, utilizando como fontes primárias os processos inquisitoriais de Antônia Maria, preservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Natural de Portugal, Antônia Maria foi denunciada à Inquisição pela primeira vez. Em seguida , degredada para Angola, mas por razões não esclarecidas pelos registros oficiais, acabou se estabelecendo no Recife. E, apesar da sua inicial condenação, continuou com sua prática mágica, agora de forma mais constante — mas não menos perigosa. Afinal foi punida em uma segunda condenação, desta vez por relapsia com os mesmos crimes de antes.
Em Recife, além dos trabalhos para terceiros, a feiticeira também usava seus conhecimentos para benefício próprio. Seduziu um vizinho que também era casado, que a descreveu para a Inquisição com uma mistura de culpa e fascínio: “de pequena estatura, alva de rosto, olhos pretos e fermosos”.
Essa descrição não é só física. Revela o impacto que ela causava. Maria Padilha e toda a sua quadrilha, nesse contexto, não era apenas uma entidade ou um demônio. Era um símbolo de liberdade feminina, transgressão e domínio sobre os próprios desejos.
As casas onde Antonia morou — todas alugadas na Ilha de Santo Antônio — logo se tornaram pontos de movimento frequente. Mas não por escândalo… por interesse. Gente de todo tipo começou a procurá-la. Pediam rezas. Previsões. Trabalhos. Amarrações.
Sem família, sem proteção, com apenas poucas aliadas ao lado — Joana Pereira, também feiticeira e também degredada, além da bruxa Pascoal Maria, Antonia fez do estigma uma estratégia de sobrevivência. E da sua casa, um espaço de fluxo vivo.
Entre suas frequentadoras mais fiéis estavam mulheres que trabalhavam com o sexo. Em pouco tempo, Antonia deixou de ser a degredada maldita. Virou a mulher que muitos queriam ouvir… esposas proibidas de saírem das suas casas pelos seus maridos, mulheres que tinham relações extra conjugais e que não queriam que seus companheiros descobrissem, além de seus clientes que eram padres, comerciantes… enquanto outros a temiam por seus feitiços, se tornavam inimigos e acabaram por denunciar Antônia para o Tribunal do Santo Ofício.
Antonia Maria foi uma das feiticeiras que estabeleceram na América Portuguesa a magia de conjuração, influenciadas pelas rezas dos livros atribuídos ao São Cipriano. Ela conjurava nos portais de casa, nas cozinhas com seus fervedouros, com oferendas nas encruzilhadas.
Trabalhamos com uma hipótese. O caso de Antonia Maria se insere perfeitamente na lógica do degredo como mecanismo de controle social e povoamento europeu detalhado no nosso texto Degredo no Brasil Colonial. Ela foi enviada a Angola por ”ações vans e superticiosas, feitiçaria, pacto expresso com o demônio” — uma prática que, no sistema jurídico da época, recaía sobre condutas criminalizadas pelo moralismo religioso e pelo Estado absolutista, sobretudo quando praticadas por mulheres marginalizadas. Por outro lado, no Recife, a fama de feiticeira degredada se transformou em propaganda: ao ser citada na Gazeta, tornou-se procurada para rituais, consultas e feitiços, o que confirma como o sistema tentava excluir, mas a própria vítima conseguia ressignificar o estigma em sobrevivência e atenção — exatamente o tipo de dinâmica invisível e resistente que por um tempo escapou ao antigo sistema que usava o degredo como instrumento que visava disciplinar corpos e mentes, para o povoamento europeu da América Portuguesa.
Na esteira do estudo da historiadora Gilmara Cruz “Práticas de feitiçaria. O caso de Maria Gonçalves Cajada”, propomos que as feiticeiras degredadas para o Brasil Colonial estabeleceram resistências culturais ao sistema rígido de normas religiosas da Igreja Católica. Em outras palavras, apesar das intenções da metrópole lusitana e do Santo Ofício, o degredo ajudou a criar novas religiosidades híbridas. Não há muitas informações sobre a vida de Antonia Maria em Portugal e na Terra de Santa Cruz, somente que seu pai era lavrador, que seu cônjuge era escrivão do judicial de Beja, e que na sua segunda condenação estava viúva. Era analfabeta- não assinou documento algum incluído em seus processos. Praticava feitiçarias, sendo muito pobre, para comer, conforme denunciantes e a ré. E conseguiu seu sustento por meio do ofício de feiticeira, em consequência ao degredo e em contradição a este sistema colonial.
Diante de tudo isso, torna-se evidente que a trajetória de Antônia Maria não é apenas um caso isolado de "feitiçaria" no Brasil Colonial, mas um marco significativo para compreendermos as formas de resistência simbólica, religiosa e existencial das mulheres degredadas à América Portuguesa. Sua atuação revela como figuras marginalizadas não apenas sobreviveram ao aparato punitivo do Estado e da Igreja, como também criaram espaços de saber e influência cultural. O culto a Maria Padilha, ao que tudo indica iniciado formalmente no Brasil com Antônia, se entrelaça à própria formação de uma religiosidade popular híbrida, nutrida no choque entre o sagrado oficial e o sagrado popular. Antônia Maria incorpora, portanto, não só o início documentado da devoção a essa entidade, mas também o arquétipo da mulher que transformou opressão em ofício. Estudá-la é conhecer a história das feiticeiras do passado, para reconhecer as bases espirituais e sociais de uma História do Brasil escrita também por gestos proibidos e por bocas que, mesmo silenciadas, continuaram a conjurar. Degredo e feitiçaria, nesse contexto, não foram apenas punição e transgressão — mas as duas faces de um mesmo processo: das tentativas de excluir, afastar corpos indisciplinados, acenderam novas formas de religiosidades no coração do mundo colonial.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. 2° ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
CRUZ, Gilmara. Práticas de feitiçaria. O caso de Maria Gonçalves Cajada. São José dos Pinhais: Página 42/ Editora Estronho, 2017.
HOORNAERT, Eduardo. A igreja no Brasil-colônia (1550-1800). São Paulo: Brasiliense, 1982)
MEYER, Marlise. Maria Padilha e toda a sua Quadrilha – De amante de um rei de Castela, a pomba-gira de Umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-colônia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
PIERONI, Geraldo. Os excluídos do reino: a inquisição e o degredo para o Brasil Colônia. 2° ed. Brasília/DF: UnB, 2007.
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes. 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
TRIGUEIRO, Tatiane de Lima. Um caso de feitiçaria na Inquisição de Pernambuco. Recife, 2001. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Pernambuco
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. 1500-1800. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
Sobre o autor:
Rafael Freitas: professor de História.
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